É uma manhã cinza em São Paulo. Após longa noite de insônia, acordo com o peito doendo. Quase todos estão doentes em São Paulo. Meus amigos tomam antibióticos. A poluição nunca foi tanta. Nunca tantos carros. Acordo disposto a escrever sobre a ideia de "acontecimento", o instante quando o presente se torna inesquecível, mas, antes de começar a coluna, abro o Facebook e leio que o Centro de Cultura Libertária da Azenha, em Porto Alegre, é invadido pela Polícia Civil. Contam os gaúchos terem sido acordados por portas arrombadas, não tendo o direito de abri-las. Recentemente o livro Mate-Me Por Favor (Uma História sem Censura do Punk), editado pela L&PM, foi apreendido e enquadrado como material subversivo pela polícia. O que seria um texto filosófico é contaminado pela realidade de um país em guerra, e eu não sei como escrever.
Diariamente, na porta do apartamento, chega a Folha de S. Paulo. Diariamente, o jornal não é sequer aberto. No espaço onde ministro um curso de roteiro para cinema, os mesmos jornais acumulam, sufocados em sacos amarelos que vão direto para o lixo. "Assinar a Folha e não ler, é endossar a poluição da cidade", reclama Vincent, o alemão que nunca mais voltou. A edição dominical chega elegantemente envelopada por uma milionária campanha publicitária comemorando o nascimento, não de uma nova Torre, mas de um novo bairro na cobiçada Zona Oeste. Em uma cidade que nunca queimou tanta favela, normal que novos bairros surjam "do nada". Estamos em acelerado processo de gentrificação.
O dia chove sobre a cidade. Do outro lado da linha, direto de Berlim, ela me pergunta o quanto é arte e o quanto é política nos textos que escrevo. A jornalista brasileira que vive na Alemanha quer saber o quanto dói em mim a queimadura dos favelados paulistanos. "Somos todos Pinheirinho, ainda". Antes que eu possa concluir a resposta, ela afirma, categórica, que não irá deixar Berlim. "Minha mãe está morta. Minha Pátria morreu. Não tenho mais o que fazer no Brasil, país que bate em professor e queima o que não tem valor".
A temporada de frio ainda não chegou ao fim e, no entanto, é primavera. Do outro lado da janela, agora faz Porto Alegre. O sol cai enquanto a aeronave manobra na pista do Salgado Filho. À noite, saio para pedalar, mas o vento que sopra do Guaíba ainda é frio e congela as mãos. Todos choram contra o vento. A aparente calma da capital gaúcha pode dar a impressão de que a cidade é um oásis de paz em um país em guerra. Basta não querer saber para que a realidade seja suportável.