Na voz e na ação de Zezé Motta, Jards Macalé e Luiz Melodia parecem um compositor só. Apenas grandes intérpretes conseguem esse efeito simbiótico com o qual a cantora encantou o bom público que foi vê-la terça-feira no Auditório Araújo Vianna, no espetáculo de abertura do 20º Porto Alegre Em Cena. Ela entrou no palco com um vestido estranho que, disse, comprara na véspera; um vestido que não a favorecia, e a certa altura chegou a brincar que estava tendo com ele uma relação de amor e ódio. Mas, em pouco tempo, esse "ruído estético" se dissolveu no poder da voz, que parece melhor do que nunca, no vigor das canções e no extraordinário desempenho dos músicos Pedro Braga, Zeppa Souza (violões) e João Bani (percussão). Em certos momentos, o trio soava como um grupo maior, ainda valorizado pela ótima sonorização.
Está certo que parte do repertório do show é bem familiar, músicas como Dores de Amores, Magrelinha, O Morro Não Engana, Estácio Holly Estácio, Decisão (todas de Melodia) e Vapor Barato (Macalé/Wally Salomão) vêm sendo ouvidas e gravadas desde os anos 1970. Mas, mesmo assim, não é tarefa fácil conquistar o público com uma maioria de canções pouco conhecidas de dois compositores que, até pouco tempo atrás, estavam engavetados como "malditos" pelo simples fato de não serem maleáveis ao gosto médio. Zezé jogou luz sobre ambos ao gravar só material deles no disco Negra Melodia, com o qual vem excursionando desde 2011 (esteve no Santander Cultural há exatamente um ano, sem ter recebido destaque nos meios de comunicação). Pode-se dizer que ela faz justiça com a própria voz.
As músicas menos "óbvias" foram se abrindo como girassóis: de Melodia, os samba-reggae Divina Criatura e Vale Quanto Pesa, o blues Começar pelo Recomeço (parceria antiga com Torquato Neto), o samba O Sangue Não Nega, o samba-choro Fadas; de Macalé, os sambas Encanto, Pano Pra Manga, o blues The Archaic Lonely Star Blues, o samba-canção Sem Essa. Na quinta música, o público já estava conquistado pela simpatia e pela voz que preenchia todos os espaços. Antes de Magrelinha, Zezé convidou as pessoas "a cantarem conosco por um mundo menos desigual, sem miséria". Os aplausos foram crescendo, até ela avisar que iria encerrar o show "com uma música de cortar os pulsos", Soluços, de Macalé, um rock áspero no qual o trio se transformou em uma banda pesada.
Ela saiu do palco dramática, ao mesmo tempo chorando e gargalhando nervosamente, como a sublinhar que a atriz não se separa da cantora. O público a aplaudiu de pé, e ela voltou para o bis com a clássica Pérola Negra (Melodia) e o samba Senhora Liberdade (Nei Lopes), músicas na medida para o coro geral. Foi uma abertura marcante, à altura da 20ª edição do Em Cena.