Se a ópera pode ser entendida como a forma de arte multimídia por excelência, reunindo canto, orquestra, texto falado, dança, cenografia, ação cênica, figurinos e por vezes vídeo e efeitos especiais embasbacantes, o que dizer de uma ópera que foi reduzida à essência, nua e crua, despida de tudo, menos de sua música? Performances em forma de concerto de uma Aida ou uma Carmen geralmente sobrevivem a tamanha nudez, mas ao custo de serem bem menos espetaculares que suas versões completas. Fidelio, a única ópera de Beethoven, encontra na música sua verdadeira força expressiva e põe à prova a opinião de Nietzsche de que "a música de Beethoven é música a respeito de música". Não se trata aqui somente de música pura, abstrata: Fidelio é uma obra inspirada em ideais extramusicais caros a Beethoven, como heroísmo, autossacrifício, liberdade e amor conjugal. Leonore assume o disfarce de Fidelio, ajudante do carcereiro-chefe cuja prisão mantém seu marido, Florestan. Leonore é impulsionada pelo desejo de salvá-lo da morte, em um ato de amor incondicional e rebeldia contra o sistema - elementos que, somados à luta pela liberdade em meio à adversidade, alimentam a contemporaneidade de Fidelio.
No último fim de semana, a Ospa apresentou Fidelio no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, em três sessões em forma de concerto, sob a regência de Carlos Spierer. A orquestra apresentou a última versão de uma obra diversas vezes revisada pelo autor, em meio a dificuldades que o levaram a escrever a si mesmo: "A despeito de todos os obstáculos sociais, é possível escrever óperas. Sua surdez não deverá mais ser um segredo, ainda que a arte esteja envolvida!". A abertura é a mais eficaz dentre as quatro versões, mas de execução pouco inspirada por Spierer. O público certamente apreenderia melhor a mensagem de liberdade de Beethoven com a ajuda de um libreto. A narração de Luiz Paulo Vasconcellos, teatralmente adequada, ofereceu o contexto de cada seção e estabeleceu com a orquestra um diálogo de necessidade questionável, mas Beethoven, que jamais tratou superficialmente de seus textos cantados, dos quais cada palavra tem som e sentido cuidadosos, precisa de mais do que apenas um contexto geral. Os cantores buscaram preencher parcialmente essa lacuna com sua belíssima interpretação quase operística.
Maestro e orquestra, em formação bastante "beethoveniana", na medida certa, saíram-se muito bem em uma obra longa, descaracterizada de sua proposta original e que demanda horas de ensaio - e reitere-se que a Ospa é uma orquestra sem casa própria, o que lhe confere heroísmo de proporções igualmente beethovenianas.