O intervalo de 12 anos entre Nascido para Matar e De Olhos Bem Fechados, este lançado meses após sua morte, em 1999, fez crescer em torno de Stanley Kubrick a fama de gênio recluso, um Urtigão da vida real vivendo como eremita nos arredores de Londres. Teve até um gaiato que, valendo-se do isolamento midiático do cineasta, fez-se passar por ele para aplicar golpes - tema do divertido filme Totalmente Kubrick, com John Malkovich.
Essa lenda, como de hábito, tem mais apelo do que a verdade dos fatos. Em um documentário póstumo em tributo a Kubrick, Christiane, mulher do diretor, diz que eles estranhavam, se divertiam e, logicamente, não davam a menor bola para o mito do artista enclausurado. Porque Kubrick, diz Christiane, conseguiu ser "incrivelmente famoso e completamente anônimo". Quem devia estar sob o olhar público, pensava o diretor, eram seus filmes, não ele.
Kubrick é lembrado como um sujeito gregário que fez de seu casarão em Harpenden uma fortaleza para celebrar a convivência com a família, os bons amigos e manter o foco no trabalho que lhe inspirava a pensar sempre um passo adiante. Conversar à mesa farta, cuidar do jardim, promover sessões de cinema, observar Christiane pintar (ela é uma festejada artista que também optou pela discrição), conversar horas ao telefone e receber colegas como Steven Spielberg (a quem confiou o projeto de A.I. - Inteligência Artificial, dirigido por este em 2001), equipar-se com as novidades tecnológicas e planejar o próximo filme, convenhamos, não são características da rotina de um sujeito recluso.
O visionário Kubrick, que vislumbrou um futuro do homem explorando Júpiter e convivendo com robôs inteligentes, provavelmente estranharia esse futuro em que até os anônimos, movidos por vaidade, exibicionismo ou total falta de noção, expõem intimidades da vida privada ao sabor do vento. De um sujeito que adorava estar rodeado por afeto físico e espelhava apenas em suas criações a frieza do contato virtual, tão apegado aos seus que foi enterrado no pátio de casa, junto à arvore ao pé da qual gostava de ler, pensar e conversar, é difícil imaginar o interesse por outra forma
de convivência que não fosse a de pelo menos saber com quem se está interagindo. Era mesmo um cara esquisito esse Kubrick.