Leia trecho de abertura do livro Getúlio (1930-1945): Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo, o segundo volume da trilogia biográfica escrita por Lira Neto:
Trecho do primeiro capítulo, intitulado Oficiais do Exército destroem um jornal: "A ditadura vai salvar o Brasil", proclamam (1930-2):
Por volta de onze e meia da noite daquele 25 de fevereiro de 1932, uma quinta-feira, os habituais frequentadores da praça Tiradentes, mais famoso reduto da boemia carioca à época, tiveram suas atenções voltadas para o som do motor de pesados caminhões que passavam pela rua ali em frente. Sambistas, atores, coristas, músicos e malandros que sempre lotavam os cafés do local até alta madrugada assistiram com surpresa à passagem do comboio composto por três enormes veículos de carga, apinhados de soldados do Exército. Eram cerca de 180 homens fardados. Todos levavam fuzis, pistolas e submetralhadoras em punho.
Os caminhões oficiais - dois pertencentes à corporação militar e o terceiro identificado mais tarde como sendo do departamento de limpeza pública do Distrito Federal -, contornaram a Tiradentes e margearam lentamente a profusão de dancings, bares, cinemas e teatros que fervilhavam ao redor da praça. Seguiram assim, sem pressa, até estacionarem enfileirados à altura do número 77, onde funcionava a sede do Diário Carioca.
O jornal, que quinze meses antes apoiara com ardor a Revolução de 30 e a consequente chegada de Getúlio Vargas ao poder, passara a publicar artigos e editoriais inflamados a favor da reconstitucionalização do país - desde novembro de 1930, Getúlio vinha governando por decreto, após a Constituição Federal ter sido declarada suspensa. A maioria desses textos, editados com destaque na primeira pagina do Diário, era assinada pelo diretor de redação, José Eduardo Macedo Soares. Um dos últimos, publicado no dia 24 de fevereiro de 1932, fustigara:
"O regime do sr. Getúlio Vargas fracassou. Primeiro, pela resistência que encontrou no sentimento brasileiro de invencível repugnância a qualquer escravidão política. Segundo, pela insanável incompetência dos homens nos quais se apoiou".
Macedo Soares, com seus característicos olhos verdes e fundos, de grandes pestanas e pálpebras meio caídas, era um polemista profissional. Em 1912, após chegar ao posto de tenente, largara a Marinha e passara a militar na imprensa, ao fundar seu primeiro diário, O Imparcial, pioneiro na publicação de ilustrações entre os jornais do Rio de Janeiro e crítico sistemático do então presidente Hermes da Fonseca. Ex-deputado federal por três mandatos consecutivos, fora preso por subversão também em três ocasiões, uma delas em 1922, quando ocupara a companhia telefônica de Niterói, encarregado da tarefa de cortar as ligações locais com a capital, onde os insurgentes tenentistas sublevavam o Forte de Copacabana. Mandado para o presídio da ilha Rasa, fugira pela porta da frente, ludibriando os carcereiros, envergando sobre o uniforme de presidiário um terno levado pelo irmão.
Em 1928, Macedo Soares fundara o Diário Carioca, para fazer oposição ao governo de Washington Luís. Pouco depois aderira à Aliança Liberal - a coalizão de forças que apoiara Getúlio Vargas à presidência da República. Em seguida à vitória do movimento de 1930, começara a criticar os civis e militares abrigados no Clube 3 de Outubro, agremiação fundada no ano seguinte no Rio de Janeiro por representantes do tenentismo. Defensores de um regime forte e autoclassificados como "patriotas enérgicos", os integrantes do 3 de Outubro - o nome do clube era uma homenagem à data do estopim da Revolução de 30 - pregavam a necessidade de manutenção indefinida do período de exceção, durante a qual o Congresso e os legislativos estaduais deveriam continuar fechados e as prerrogativas individuais e as liberdades civis revogadas. Os "outubristas" argumentavam que uma possível volta à ordem legal apenas serviria para trazer de volta os políticos e a politicalha varridos do poder pela Revolução.
"Foi para realizar a tarefa de renovar o país que se instituiu, em fins de 1930, a ditadura no Brasil", afirmava um dos mais destacados líderes tenentistas, Juarez Távora, promovido a major pelo governo revolucionário. "Essa obra prévia de desentulho, a ditadura só poderá dar por concluída quando houver separado, criteriosamente, o joio do trigo, os elementos imprestáveis, inadequados ou apodrecidos dos esteios bons que também se encontram sob os destroços da velha ordem".
Em contraposição ao Clube 3 de Outubro, o Diário Carioca se convertera no baluarte do retorno à ordem constitucional. Suas páginas não cansavam de exigir eleições livres para uma Assembleia Nacional Constituinte, com vistas à elaboração de uma nova Carta Magna para o Brasil. Por isso, os três caminhões parados em frente à sede do jornal àquela hora da noite, com soldados ostensivamente armados, não pareciam indicar uma visita de cortesia.
A intenção dos recém-chegados não demorou a se revelar. Sem descer dos veículos, os militares obedeceram à ordem determinada por um oficial e, a um só gesto, apontaram os canos de suas armas para a fachada do prédio. A seguir, sob nova ordem, a de fazer fogo, desfecharam uma ruidosa carga de disparos. Depois de meio minuto ininterrupto de artilharia, os caminhões ligaram os motores e seguiram em frente, sacolejando em marcha lenta, como se nada de anormal houvesse ocorrido.
Em meio à balbúrdia que tomou conta dos cafés, os boêmios mais curiosos largaram violões e pandeiros sobre as mesas e saíram para conferir o estrago. A imagem era devastadora. As balas de grosso calibre estilhaçaram as vidraças do Diário e abriram centenas de buracos nas paredes do imóvel de dois pavimentos. Os trabalhadores gráficos e os redatores que preparavam a edição do dia seguinte despontaram à calçada, atônitos.
Enquanto todos aferiam a extensão da violência, notou-se que os caminhões apenas circundavam a praça e já retornavam, ameaçadores. O primeiro ataque fora somente uma mensagem de advertência, compreendeu-se. Os soldados ainda não haviam dado o serviço por terminado.
"Foge, que lá vem bala de novo!", alguém gritou, em meio à multidão.
Quase não restou ninguém para assistir à segunda ofensiva. A maioria dos que ali se aglomeravam fugiu pela rua da Constituição - via pública que passara a ter um nome meramente decorativo, sem nenhuma correspondência com a situação política do país. Apenas os mais afoitos ousaram buscar um ponto de observação privilegiado por trás das árvores, bancos de granito e postes de iluminação da praça, já que todos os bares e cafés das imediações trataram de cerrar imediatamente as portas e um grande número de funcionários do jornal decidiu acompanhar os populares em debandada.
A nova saraivada de tiros se mostrou ainda mais ensandecida do que a primeira. A exemplo da ação anterior, os soldados atiraram do alto das carrocerias das viaturas, sem ao menos se darem ao trabalho de desembarcar. Mais uma vez, os caminhões entraram em movimento logo após a redobrada carga de artilharia, permitindo que os últimos grupos de jornalistas e gráficos tivessem tempo para evacuar o prédio, advertidos pelos gritos dos soldados de que ainda haveria um terceiro e definitivo ataque.
De fato, depois de novamente contornarem a praça, os três caminhões pararam em fila, no mesmo lugar de antes. A diferença foi que desta vez os soldados saltaram dos veículos e invadiram o prédio, pondo abaixo a porta da frente a golpes de coturno. Um pelotão de recrutas, munido de pás, machados e picaretas utilizadas na construção de trincheiras de guerra, ficou encarregado de destruir tudo o que encontrasse no caminho. O parque gráfico, localizado no andar térreo, consistiu no primeiro alvo. Máquinas tipográficas, mesas, cadeiras e armários foram reduzidos a destroços.
Para surpresa dos invasores, alguns poucos funcionários insistiram em permanecer no interior do imóvel. Entre eles, quatro linotipistas, que receberam coronhadas e golpes de sabre nas costas, na cabeça, nos braços e no peito. Um deles, Crispim Barbosa Júnior, que tentou reagir, foi baleado na barriga e atingido por um projétil que se alojou no osso ilíaco direito.
A fúria do assalto prosseguiu no piso superior, onde funcionava a redação do jornal. Dois redatores que também não fugiram, Rafael Holanda e o crítico de arte Angione Costa, foram espancados e sofreram escoriações generalizadas pelo corpo. Ali também não restou um único móvel intacto. Todos os birôs e máquinas de escrever foram estraçalhados pelos golpes de machado e picareta. Até os corrimões da escada chegaram a ser arrancados. Arquivos foram violados e pilhas de papéis, documentos e fotografias voaram janela afora, o mesmo acontecendo na tesouraria com livros contábeis e fichas dos funcionários.
"Onde está o Macedo Soares?", um dos militares indagou aos dois jornalistas estatelados no chão.
Como não obtivesse resposta, o oficial que parecia comandar a ação rumou para o gabinete da administração do jornal. Depois de constatar que não havia ninguém lá, permitiu que uma única peça do mobiliário ficasse intacta: a cadeira do diretor editorial. Não admitiu que a despedaçassem, como fizeram com todo o resto. Preferiu disparar contra ela um único tiro, à meia distância. O projétil varou o encosto acolchoado, produzindo um rombo de bom tamanho no enchimento de palha. A mensagem era mais do que evidente. Aquela bala tinha sido reservada para o dono da cadeira. Se estivesse sentado ali, Macedo Soares teria sido trespassado pelo balaço.
Meia hora mais tarde, por volta da meia-noite, depois de se darem por satisfeitos com a quebradeira, os soldados retornaram aos caminhões. Nesse instante o local já se encontrava deserto. Poucos metros adiante, os letreiros do Teatro Recreio anunciavam a nova atração da casa, um espetáculo de revista teatral previsto para estrear na noite seguinte, escrito, dirigido e produzido pelo trio Djalma Nunes, Alfredo Breda e Amador Cisneiros. No elenco, aparecia pela primeira vez em letra de forma o nome de um jovem palhaço, trapezista e acrobata de circo chamado Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Diaz, anunciado nos cartazes pelo pseudônimo de Oscarito Brennier. Muito em breve ele ficaria famoso nos palcos e no cinema, fazendo dupla com Grande Otelo e se tornando conhecido apenas pelo apelido de Oscarito.
O espetáculo que marcou a chegada do célebre comediante ao teatro de revista faria um estrepitoso sucesso, embora as colunas especializadas tenham dado pouca atenção ao novato Oscarito Brennier e preferido destacar a atuação da vedete Otília Amorim e das "25 recreio-girls encantadoras" que dançavam de pernas de fora e com plumas na cabeça ao longo dos vinte números musicais da atração. O que ficou mais evidente, porém, foi a inevitável associação entre o título do novo show do Teatro Recreio e o violento atentado contra o Diário Carioca. Para muitos, o nome do espetáculo poderia servir como um recado ao titular do Palácio do Catete, sede do governo federal:
"Calma, Gegê".