Branca de Neve é daqueles filmes que, inexplicavelmente, correm o risco de passar batido pelo circuito. E depois que sair de cartaz não adianta lamentar que perdeu aquele que se coloca entre os grandes lançamentos do ano. Estreou no último dia 5 em Porto Alegre - no Guion Center - e tem até agora uma recepção bem aquém da merecida. Esse segundo longa-metragem do diretor espanhol Pablo Berger - autor de Da Cama para Fama (2003), inventiva incursão no universo dos filmes pornô em Super-8 que foram moda nos anos 1970 - faz uma livre adaptação do clássico conto de fadas, transpondo a história para a Espanha dos anos 1920.
A produção foi a grande vencedora do Goya em 2013: ganhou 10 troféus na mais importante premiação do cinema espanhol, entre eles o de melhor filme e de melhor atriz, para Maribel Verdú. Branca de Neve é um filme em preto em branco e sem diálogos, como seria feito à época que retrata.
A história se passa em Sevilha, onde vive o famoso toureiro Antônio Villalta (Daniel Giménez Cacho). Após um acidente que o deixa inválido e a morte de sua mulher Villalta se casa com a enfermeira Encarna (Maribel Verdú),que, encarnando a madrasta megera, vai perseguir e maltratar a enteada, Carmen (Sofía Oria, quando criança,e Macarena García, na fase jovem). Em entrevista a Zero Hora, Berger fala das dificuldades que teve para realizar o projeto e de suas opções estéticas e narrativas para subverter o conto de fadas transformando os sete anões em seis pequenos toureiros.
Zero Hora - Seu primeiro longa-metragem (Torremolinos 73 - no Brasil, Da Cama para a Fama) é de 2003. Por que Branca de Neve demorou tanto tempo?
Pablo Berger - A razão é simples, está na primeira página do roteiro de Branca de Neve, que dizia: "Este é um filme mudo e em preto e branco, com música do começo ao fim". Era 2005. Todos os produtores achavam que eu havia ficado louco. Um filme mudo, em preto e branco e com toureiros anões. E caro, muito caro. Felizmente, no meu caminho cruzou o produtor Ibon Cormenzana, que disse: "É o melhor roteiro que eu já li, mas não tenho nenhuma ideia de como financiá-lo, será muito, muito difícil". Oito anos mais tarde, conseguimos realizar o nosso sonho.
ZH - A opção de realizar o filme nesse formato foi para destacar o aspecto gótico e sombrio da fábula?
Berger - Desde que comecei a fazer cinema, sonhava em fazer um filme mudo. Fazê-lo em branco e preto e com uma relação de 1:1,33 (proporção quadrada da imagem, como nos primórdios do cinema) era natural e coerente para um filme desta natureza. Para mim, o filme é como a máquina do tempo de H.G. Wells, é uma maneira de sonhar acordado em outro tempo e outro lugar. O cinema é viver a vida dos outros. Mas, sim, é verdade que, para capturar o aspecto sombrio e gótico da minha Branca de Neve, o preto e branco era a paleta perfeita. É mais abstrato e poético, é o cinema em estado puro.
ZH - Qual é a razão para localizar Branca de Neve na década de 1920 e no ambiente das touradas?
Berger - A origem do filme é uma foto de um grupo de anões toureiros, de Cristina García Rodero. Pensei: "E se eu colocasse Branca de Neve vestida de toureira no meio da foto?". Assim surgiu, como um cartaz do filme, a ideia da minha versão ibérica da Branca de Neve. Em vez de ser uma princesa, filha do rei e da rainha da Espanha, Branca de Neve é filha dos "reis do povo", o mais famoso toureiro e a mais popular cantora de flamenco da época. O universo das touradas está presente na origem. E o fato de a história se passar nos anos 1920 tem a ver com a ideia de fazer um filme de acordo com seu tempo e também porque essa foi a década de ouro das touradas, da rivalidade entre (os toureiros) Belmonte e Joselito.
ZH - Nos últimos anos, foram realizadas duas versões de Branca de Neve em Hollywood e também um muito badalado filme mudo em preto e branco, O Artista, que ganhou o Oscar. Esses projetos tiveram alguma influência na realização de seu filme?
Berger - Às vezes, acho que eu deveria abandonar o cinema, comprar uma bola de cristal e um turbante e fazer previsões a produtores sobre tendências para os próximos anos. Se tivessem prestado atenção em mim em 2005... Teríamos sido os primeiros (risos). Mas, falando sério, O Artista não teve qualquer influência no meu filme. Quando O Artista estreou na Espanha, eu já tinha rodado Branca de Neve. O engraçado é que um não sabia da existência do outro. As ideias estão no ar. Nossa semelhança é apenas formal. E sobre as outras Branca de Neve, os contos de fadas estão na moda. Mas a minha madrasta, Maribel Verdú, é a mais bonita e a mais malvada de todas as versões. Certamente, Joan Crawford e Bette Davis ficariam orgulhosas de sua interpretação.
ZH - Como foi trabalhar com o elenco num registro de interpretação mais expressionista?
Berger - No filme, existem dois estilos de interpretação. Um é estilizado, ao estilo das estrelas da Hollywood clássica, como a madrasta de Maribel Verdú. O outro é mais naturalista, como as duas atrizes que vivem Branca de Neve, a menina Sofia Oria e a adolescente Macarena García. Basicamente, os personagens sombrios são mais expressionistas e histriônicos, e os personagens mais luminosos são mais realistas. O desafio era ter os dois estilos no mesmo filme. E é incrível como eles convivem maravilhosamente.
ZH - Branca de Neve faz referência direta à fábula apenas quando os anões colocam o nome da personagem em Carmen. Foi uma opção para ter mais liberdade e construir o seu próprio universo?
Berger - Minha Branca de Neve não é uma adaptação da fábula. É uma livre inspiração. O conto ocupa poucas páginas, enquanto no roteiro são mais de 90. No meu filme, há personagens novos, e Branca de Neve é uma mulher muito forte, não fica em casa cozinhando e lavando cuecas dos anões. Ela é a líder do grupo. E são seis anões, não sete. Nada a ver com razões orçamentárias (risos). Eu a chamo de Carmen porque ela tem muito a ver com a personagem de Mérimée. É uma Branca de Neve pós-moderna. A sequência a que você se refere é uma piscada de olho metalinguística.
ZH - O filme faz uso de imagens computadorizadas? Que efeito foi usado para fazer a praça de touros parecer tão grande?
Berger - Sim, há efeitos digitais. Mas essa arena é real. Filmamos na arena de touros de Aranjuez, que é muito grande mesmo. Mas, como todos os entusiastas da fotografia sabem, se fotografas com uma lente grande angular o espaço parece muito maior. Assim fizemos, pois queria que a arena parecesse um circo romano.
ZH - O senhor vê algum paralelo entre seu trabalho em Branca de Neve e os filmes recentes de diretores como Sokurov (Fausto), Miguel Gomes (Tabu) e Martin Scorsese a homenagem a Méliès em Hugo Cabret), que evocam a linguagem visual dos primeiros anos do cinema?
Berger - Não tenho nenhuma dúvida de que temos de olhar para o passado para fazer coisas novas. Mas não olhar com nostalgia. Você tem de retorcer as regras de sintaxe cinematográfica. Nós, cineastas, temos esquecido que a essência do nosso meio é contar uma história com imagens. É o que faz do cinema uma forma de expressão artística única e excepcional. Não vi o filme de Sokurov, mas os do Scorsese e do Miguel Gomes são estupendos. E não podemos esquecer de Georges Méliès e outros grandes mestres do cinema mudo, como Abel Gance, Murnau, Dreyer ou King Vidor. É curioso que, até recentemente, mesmo para os estudiosos, a história do cinema começava com os filmes sonoros. Espero que, depois do sucesso de O Artista e de Branca de Neve, venham mais filmes mudos e modernos de outros países. O cinema mudo é uma experiência sensorial muito mais poderosa do que o cinema sonoro. Apenas tem de haver coragem para realizá-lo. Vá e veja.