Foram minutos até começarem, nas redes sociais, as piadas com a notícia de que Luiz Inácio Lula da Silva deve ter, a partir deste mês, uma coluna mensal distribuída pela agência do The New York Times (mas não obrigatoriamente publicada no jornal norte-americano).
Lula já foi colunista de jornal. Ao longo de dois anos e sete meses, de 1999 a 2002, o então presidente de honra do PT assinou artigos na edição dominical de Zero Hora. Com um texto exaltando a liberdade de imprensa, mas deixando no ar a ideia de um conselho para "acompanhar a campanha eleitoral, fiscalizando gastos e analisando criticamente o equilíbrio das coberturas dos meios de comunicação", Lula despediu-se do espaço em março, para preparar-se à eleição que faria dele Presidente da República.
Em sua imensa maioria, tratavam-se de críticas contundentes ao governo Fernando Henrique Cardoso e a sua política econômica. A argumentação era clara e não raro baseada em estatísticas - na primeira coluna, havia até um gráfico da evolução do rombo da previdência ao longo do governo tucano.
Lula também se revelava atento ao seu público, no caso, o leitor gaúcho. Citava exemplos do Rio Grande do Sul, comentava a gestão de Olívio Dutra no Piratini e, na coluna intitulada Democracia faz bem, celebrava as conturbadas prévias que fariam de Tarso Genro candidato a prefeito de Porto Alegre frente a José Fortunati, em 2000. No texto, chegava a dialogar com o colega de letras Paulo SantAna.
"Li que o jornalista Paulo SantAna reclamou há dias de que somente alguns milhares de petistas tenham a prerrogativa de escolher neste domingo o futuro prefeito de Porto Alegre. Claro que fico satisfeito com seu prognóstico de que o candidato do PT vencerá as eleições de outubro, ainda que tenha claro que o embate eleitoral será duro".
Com o devido distanciamento histórico, chamam atenção também os momentos quem-te-viu-quem-te-vê. Do primeiro ao último texto, Lula pregou a rescisão dos acordos firmados com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mantidos quando o PT assumiu o governo. Em dezembro de 2000, o futuro presidente clamava por uma reforma política para evitar "mazelas vexatórias, como as recentes denúncias de caixa 2 nas campanhas presidenciais de FH". Cinco anos depois, o uso de caixa 2 não foi a denúncia contra os operadores do Mensalão, foi a defesa.
Lula também pregava, na mesma reforma política, a impossibilidade de o presidente se reeleger. Abre aspas:
"O fim da reeleição trará de volta à política fatores preciosos: disputas democráticas e mais equânimes, favorecendo a renovação e o aparecimento de novas lideranças."
A reforma política não só passou os oito anos de governo Lula engavetada como recém voltou ao limbo pelas mãos de Dilma Rousseff, mais preocupada no momento com seu projeto de, veja bem, reeleição em 2014.
É impossível afirmar com 100% de certeza que as colunas não eram integralmente redigidas por Lula, mas é plausível desconfiar. A julgar pelos textos, é mais provável apostar que eram escritos por um petista atento às questões do Rio Grande do Sul. Provavelmente passavam pelo crivo do então pré-candidato à presidência ou de sua equipe. E antes que isso seja interpretado como uma crítica a Lula, é comum que profissionais das letras, como assessores de imprensa e de marketing político, articulem textos não só de políticos, mas de empresários, esportistas e lideranças convidadas a publicar suas ideias. Desde que estes, é claro, participem e aprovem os textos a eles atribuídos. O lamentável, no caso de Lula, é que os artigos em nada reproduzem o estilo espontâneo que o consagrou.
São mais de uma centena de colunas e nenhum senso de humor. À exceção de um e outro "na semana passada, estive no evento x", não há histórias pessoais. Também não há sequer um exemplo do recurso retórico preferido de Lula: analogias com o cotidiano, das donas de casa, do mundo do futebol, enfim, de situações reais que fizeram do pernambucano um presidente capaz de ser compreendido pelo mais simples interlocutor. A julgar pelos textos em ZH, ele não passaria de um sisudo crítico do neoliberalismo, tão bem articulado quanto enfadonho.
Um bom exemplo aparece em novembro de 2001, quando Lula assina o texto Respeitem Olívio Dutra. À época, o governador gaúcho suava sob os holofotes da CPI da Segurança Pública, na Assembleia. O futuro presidente da República começa: "Em 27 anos de estreita convivência com ele (Olívio), aprendi a admirar o extremo rigor de sua conduta no que toca aos procedimentos legais que obrigam o homem público a agir com probidade".
Três anos antes, em outubro de 1998, Olívio tinha uma campanha eleitoral em ascensão, enquanto Lula era coadjuvante, um obstáculo pouco significativo à bem encaminhada reeleição de FHC. No alto de um palanque em Caxias do Sul, Lula fazia o mesmo que fez na coluna: defendia a extrema idoneidade de Olívio, mas contando uma história das parcas eras do PT, quando ambos e um terceiro colega de partido dividiam apartamento.
Lula divertia-se com o esforço de Olívio em repartir irmamente a pouca comida. O desafio, antevia Lula, era ver como o gaúcho dividiria o único ovo à disposição para a janta.
"Abri a geladeira e não vi mais o ovo. Pensei: Mas poxa vida, não é que o malandro do Olívio passou aquele ovo nos bigodes? Pois cinco minutos depois ele me aparece com o ovo já cozido, que era para a gente poder picar entre os três."
A plateia de militantes caxienses caiu na gargalhada.
Talvez uma coluna sobre políticas sociais na América Latina no New York Times não seja lugar para anedotas, mas não há dúvidas de que os textos de Lula serão mais saborosos se deixarem Lula ser o político/orador/escritor que fala melhor sobre ovo cozido do que sobre probidade.
Ou melhor, que fala sobre probidade usando um ovo cozido.
Anais da República
Ex-presidente Lula estreia neste mês como colunista do New York Times
Texto também será distribuído a outros veículos pela agência do jornal
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