*Matéria publicada originalmente em 23 de maio de 2007 (jornal Zero Hora)
De que maneira um dos trabalhos mais importantes para a evolução da humanidade - apurar e narrar o passado - pode ser afetado pelas novidades tecnológicas e pela era da informação? O tema foi um dos que permearam a entrevista e as palestras proferidas pelo francês Roger Chartier e pela brasileira Sandra Pesavento, ontem, no 10º encontro do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, evento que, desde março, traz a Porto Alegre alguns dos maiores intelectuais do mundo.
Autor de mais de 10 títulos publicados no Brasil, entre eles A Ordem dos Livros, Os Desafios da Escrita e A Aventura do Livro, Chartier é um dos principais pesquisadores sobre o livro e a leitura, tema diretamente afetado por novas tecnologias, como a Internet. Em entrevista coletiva, ontem à tarde, ele criticou o formalismo de alguns acadêmicos, referindo-se sem preconceito a diferentes formas de narrar a História, inclusive o cada vez mais popular flerte entre romances e fatos históricos.
- Os historiadores acham que têm o monopólio sobre contar o passado. Existem outras formas. Mas é importante mostrar que estas outras formas funcionam de maneira diferente. O perigo está quando há o esquecimento dessa diferença. A novela histórica, por exemplo, é útil para aproximar o leitor da História, mas não a substitui - afirmou Chartier.
Para o pesquisador, a textualidade eletrônica, a partir do momento em que todos os textos aparecem da mesma forma para o leitor, dá margem para dúvidas quanto à autoridade científica dos textos, não somente os históricos.
- A falsificação circula mais facilmente na forma eletrônica do que na impressa. O negacionismo (movimento que nega o holocausto judeu), por exemplo, aparece com as mesmas formas que as obras mais cientificamente fundamentadas dos historiadores. Há um perigo nessa nova forma de comunicação e recepção dos textos - alertou o pesquisador.
Para pesquisadora, situação de museu é "trágica"
Ainda na entrevista coletiva, a historiadora Sandra Pesavento complementou a fala de Chartier sobre a pesquisa pela Internet, ressalvando que a realidade no Brasil é bastante distante dos avanços tecnológicos. A professora usou o exemplo do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, que abriga um grande acervo de jornais e revistas históricos e que passa por uma situação que ela classificou como trágica.
O acervo não só está longe de ser disponibilizado na rede como se estaria em processo de degradação.
- No nosso canto do Brasil, a realidade de acessar documentos pela Internet está muito distante. O Museu Hipólito da Costa está em mau estado. Falta vontade política e dotação orçamentária - criticou.
À noite, em sua palestra no Salão de Atos da UFRGS, Sandra ressaltou dois aspectos que espertam a necessidade de se refletir sobre a História na atualidade. O primeiro, o fato de o historiador ter perdido o controle exclusivo de falar sobre o passado, competindo com outras falas. A segunda, a percepção de que os tempos são múltiplos, e tudo o que foi contado de uma certa maneira poderia ter sido contado de outra.
Durante as perguntas do público, Chartier comentou a crescente inquietação da sociedade, que busca cada vez mais conservar sua memória, mesmo o que seria difícil de fixar por meios materiais, como a transmissão oral de conhecimentos e tradições, mas também a conservação de prédios antigos.