Åsne Seierstad escreveu um best-seller e acabou assumindo uma dupla personalidade - a curiosidade voltada à escritora quase sempre faz referência não só à experiente correspondente de guerra de 37 anos, mas ao mesmo tempo a Shah Muhammed Rais, personagem central de O Livreiro de Cabul.
Palestrantes de ontem à noite do ciclo Fronteiras do Pensamento, no Salão de Atos da Reitoria da UFRGS, a norueguesa e o escritor gaúcho Moacyr Scliar falaram sobre A Literatura no Limite da Realidade. Em 2002, pouco depois do 11 de Setembro, quando a estupefação fazia despertar o interesse por aquela parte do mundo, a jornalista viveu por três meses na casa de Sultan Khan, nome fictício que deu ao protagonista, um vendedor de livros que não deixou de lado a profissão mesmo curvado pelo sufocante regime Talibã.
O retrato algo singular do inflexível defensor das tradições seculares do Afeganistão, centro de referência e obediência de uma família formada por duas mulheres e 10 filhos, deu a Åsne a certeza de que ali estava um grande enredo. Trata-se do mesmo fascínio de leitores e interlocutores da escandinava, que querem ir além das 320 páginas - o que a família afegã achou do livro, que tipo de contato é mantido hoje entre eles, como está a vida daquelas pessoas?
- Ele não é um vilão, o comportamento não é abusivo - esclareceu Åsne durante a entrevista coletiva concedida à tarde, também na universidade, depois de almoçar em uma churrascaria da Capital. - Vejo agora que ele esperava que eu escrevesse um conto de fadas, em que ele fosse o anjo guardião do Afeganistão, transformando em ouro e prata tudo que tocasse.
- As diferenças culturais não apenas servem para separar e criar conflitos entre os povos. Também podem aproximar culturas distintas - resumiu Scliar, citando como exemplo a imigração de judeus do Leste Europeu para o Brasil.
A relação entre a hóspede e o anfitrião, entretanto, é bem menos tensa do que parece. Shah Muhammed Rais, que processou Åsne e se defendeu escrevendo Eu Sou o Livreiro de Cabul, foi à Noruega diversas vezes depois de já ter manifestado seu desgosto com a narrativa, teve conversas amenas durante jantares com a escritora e até conheceu os pais dela em sua cidade natal, Lillehammer.
- A impressão que tenho é de que ele não quer que o conflito termine. Ele exigiu que o livro saísse de circulação, quis que eu o reescrevesse ou que ele viajasse ao meu país para que o reescrevêssemos juntos. Ele nunca fez críticas concretas, não apontou erros, que eu teria corrigido - afirmou.