Ele já foi chamado de "Dr. Morte","Herodes" e até de "nazista" por líderes de movimentos moralistas. Entretanto, o australiano Peter Singer é apenas um filósofo moral. Responsável pela cátedra de bioética na universidade americana de Princeton desde 1999 é autor de Ética Prática (Martins Fontes, 1994), Vida Ética (Ediouro, 2002), Libertação Animal (Lugano, 2004) e A Vida Que Podemos Salvar: Agir Agora Para Pôr Fim à Pobreza no Mundo (Gradiva, 2011). Em 26 de agosto, Peter Singer estará em Porto Alegre para o ciclo de palestra Fronteiras do Pensamento.
O filósofo não é chegado a frases de lugar-comum, eufemismos ou expressões edulcoradas, o que faz com que suas plateias ou leitores saiam realmente chocados. Sua doutrina parte do utilitarismo formulado, inicialmente, no final do século 18, pelo inglês Jeremy Bentham. Para essa corrente, o ato moralmente justo é sempre aquele que resulta num acréscimo da felicidade geral, em detrimento da dor. Para compreender melhor o pensamento do conferencista do Fronteiras do Pensamento convidamos o biólogo José Roberto Goldim, chefe do Serviço de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da PUCRS, e o pesquisador Álvaro Montenegro Valls, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos.
Quais as vantagens e as limitações de pensar uma "ética aplicada" para a contemporaneidade, como faz Peter Singer?
Álvaro Valls - Singer, em vez de partir de princípios abstratos/universais ou de uma perspectiva contratualista, propõe que respeitemos toda a vida senciente, isto é, que respeitemos os interesses daqueles seres que podem, mas não deveriam, sofrer. Esta perspectiva é muito respeitosa e digna, e não atenta contra a dignidade humana. Ao contrário, numa perspectiva que já encontramos em São Francisco de Assis, ele supõe que devemos respeitar também os animais, que muitas vezes são maltratados nas experiências científicas, nos circos e mesmo nas fazendas de criação confinada. Sua ética aplicada não perde tempo discutindo as questões tradicionais do sexo (como era comum ao moralismo de poucas décadas atrás), mas se prende às questões da preservação da vida em suas diversas dimensões.
José Goldim - Ao se debruçar corajosamente sobre problemas práticos e contundentes, de um modo que se aproxima ao da militância, sem perder o rigor filosófico, Peter Singer apresentou, desde a década de 1970, argumentos para uma fundamentação de questões até então não abordadas com esta intensidade e profundidade. Uma Ética Aplicada é uma tentativa de busca de justificativas filosóficas para questões práticas. A grande vantagem deste tipo de abordagem é a aproximação do pensamento filosófico de temas que dizem respeito à vida diária das pessoas.
Singer já provocou polêmica com afirmações de que o aborto, a eutanásia e o infanticídio são justificáveis sob certas circunstâncias. O que pensa sobre isso?
Álvaro Valls - Se quisermos captar seu pensamento num princípio genérico, podemos dizer que ele considera, ao repensar a vida e a morte, que deveríamos tentar respeitar tanto o desejo de muitos de viver quanto o desejo daqueles outros que preferem morrer. Mas o que costumamos fazer em geral é contraditório: defendemos que ninguém tem o direito de morrer, mas não ajudamos a sobreviver milhões de crianças subnutridas; falamos contra o aborto, mas não pensamos em adotar uma criança de rua (a mesma que escapou do aborto). Os bispos católicos condenam o aborto, mas quantos deles se empenham de fato em auxiliar as crianças de rua? Por outro lado, não é verdade que Singer ande por aí pregando o aborto e/ou o infanticídio. O que ele talvez queira dizer, traduzido em linguagem nossa, é que se o nascituro jamais terá uma vida realmente humana, vida de relação, vida racional, vida (por que não dizer?) espiritual, então não somos obrigados a levar a gestação até o fim. Cultura da morte quem tem é um presidente americano que resolve destruir por meio século outro país de milhões de habitantes, e não uma jovem grávida que não sabe encarar uma vida defeituosa que está para nascer e cuida de outros filhos.
José Goldim - As propostas de Peter Singer são polêmicas por que rompem com o senso comum. Abordar temas delicados como o aborto, o infanticídio e a eutanásia provoca inquietude nas pessoas e nas instituições, pois todos eles nos remetem à morte, à discussão sobre a finitude. A isto, Singer agrega outra questão: a dos limites da liberdade. Em várias obras ele propõe a reflexão sobre a dessacralização da vida, ou seja: retirar a noção de que todas as vidas são intrinsecamente valiosas, de que é sempre errado matar intencionalmente um ser humano inocente, como afirmou John Keown, em 1993. Neste ponto reside uma das mais importantes questões levantadas por Singer: a diferença entre ser humano e pessoa. Matar uma pessoa é errado, mas não um ser humano que ainda não é detentor de todas as características que o tornam pessoa. A racionalidade, a autonomia e a consciência de si são exemplos destas características, que diferenciam um ser vivo pertencente à espécie humana de uma pessoa. São conceitos de campos diferentes, um biológico e outro filosófico, com importantes repercussões jurídicas. Outros autores, como Michael Tooley, concordam e reafirmam esta posição. A justificativa da eutanásia é oposta. A eutanásia pode ser justificada, não pela destituição de uma pessoa, mas por ser a expressão voluntária de uma pessoa. O argumento utilizado por Singer se baseia no fato de que sendo racional, autônomo, tendo consciência de si e de seu futuro, uma pessoa pode intencionalmente desejar o fim de sua vida, quanto esta se torna insuportável por motivo de uma doença incurável e associada a grande sofrimento. A argumentação de Singer não pode ser banalizada, o próprio autor reflete sobre a necessidade de se oferecer os meios para abrandar o sofrimento e confortar o doente, sendo a eutanásia uma alternativa quando esses limites forem ultrapassados. Na eutanásia, a questão central é a relação entre a vida e a qualidade de vida, sobre o sofrimento associado ao viver. Singer foi muito hostilizado por suas posições a respeito da eutanásia. Ele teve que estabelecer uma clara distinção entre seu pensamento sobre a eutanásia e o uso equivocado da palavra para justificar práticas de extermínio durante o período nazista.
Como entra o conceito de dor na moral singeriana, tanto a dor humana como
a animal?
Álvaro Valls - É uma reflexão de tipo universal, se quisermos, e bastante singela: não se deve provocar sofrimento ou compactuar com o sofrimento dos outros, qualquer que seja a espécie a que pertençam. Aos poucos, os velhos e conhecidos preconceitos vão sendo superados ou proibidos: os de raça e os de sexo. Nosso país parece esquecer-se que compactuou com a escravidão até fins do século 19. O machismo ainda vigora, e as delegacias de mulheres estão lotadas, mesmo sabendo-se que muitas não prestam queixa dos maridos agressores. O preconceito eurocêntrico já se disfarça melhor. Os de classes sociais funcionam silenciosamente. Mas um último preconceito ainda é aceito como algo natural: o de nossa superioridade entre as espécies vivas do planeta. Ora, o ser humano é talvez a única espécie que mata por esporte, por prazer, por sadismo. Os filósofos, desde Aristóteles, ao menos, sempre buscaram definir o que nos distingue dos outros animais, mas com isso se esqueceram de ressaltar aquilo que nos une e nos aproxima.
José Goldim - Talvez a maior contribuição dada por Peter Singer tenha sido na discussão sobre a questão envolvendo o sofrimento de animais em diferentes situações criadas pela sociedade, seja na pesquisa como nos meios de produção. Em 1975, quando publicou seu livro Libertação Animal, de tradução tardia para o português, provocou uma série de questionamentos sobre práticas até então aceitas, como os testes de cosméticos em coelhos, a produção de aves e mamíferos em confinamento, entre outros. Singer resgatou o pensamento de Jeremy Bentham sobre a não justificativa para o sofrimento de animais, que independe da sua capacidade de raciocinar e da sua condição não humana. Ele retomou o pensamento de Albert Schweitzer e de Fritz Jahr, do início do século 20, ao incluir os animais como objeto de consideração da reflexão ética.
Independente de concordar ou discordar de Peter Singer, qual é a contribuição que seu modo de fazer filosofia traz para uma ética da contemporaneidade?
Álvaro Valls - De certo modo, Singer trouxe a filosofia de volta à terra, trocando a ênfase demasiado especulativa das teorias éticas para uma perspectiva mais "problemática": filosofar a partir dos problemas concretos. Aliás, essa é uma característica que costuma valer para os pensadores de linha mais utilitarista: Singer diria que, independentemente da motivação, se há uma creche pobre para crianças mutiladas por minas terrestres em Angola, por exemplo, o que interessa é que ela seja ajudada de forma concreta. Já numa ética de tipo kantiano, muito respeitada entre os filósofos, o que vale, mesmo, é a intenção (claro que não apenas uma veleidade qualquer, mas uma vontade firme e esforçada até o fim), ainda que o resultado não seja o esperado. Em nosso exemplo, terei agido eticamente se mandei meu dinheiro para aquela creche de Angola, mesmo que alguma instância intermediária o desvie no meio do caminho.Mas aí, justamente, temos uma proposta de Singer que merece ser levada mais a sério. Ele diz que, digamos, 10% do dinheiro de que dispomos não pode ficar para nosso uso, mas que devemos aplicá-lo, da melhor maneira possível, e ao nosso critério, em favor dos menos favorecidos. Seu raciocínio é de que nem o rico nem o pobre ficariam em má situação, retendo 90% para si e dando 10% para alguém mais necessitado, como um dever de fraternidade e de humanidade. É a ideia kantiana de que, se podemos ajudar sem sacrifícios significativos, então temos de ajudar. Enfim, para resumir, estou convencido de que Singer é um pensador ético a favor da vida, de uma vida mais humana e mais fraterna.
José Goldim - Peter Singer é importante para a Filosofia contemporânea, não por se concordar ou discordar de sua obra, mas sim pela sua contribuição em si, pelo desinstalar que provocou. Ao questionar questões importantes e mobilizadoras, Peter Singer arejou uma discussão, em um momento adequado como foram os anos 1970, em que o questionamento foi a marca e o surgimento de novas e criativas abordagens permitiram avançar sobre temas antes Peter Singer tidos como tabu.
Peter Singer no Fronteiras do Pensamento
26 de agosto de 2013, às 19h30, no Salão de Atos da UFRGS (Av. Paulo Gama, 110 - Porto Alegre - RS)
Informações sobre passaportes de entrada no site fronteiras.com