Há quase 40 anos, os irmãos Paolo e Vittorio Taviani escreveram e dirigiram "Allonsanfan", estrelado por Marcello Mastroianni no papel de um revolucionário na era napoleônica. Na pré-estreia no Festival de Cannes, questionaram o ator sobre a experiência de trabalhar com dois diretores no mesmo filme. Ele fingiu surpresa: "Eram dois?".
Os dois agora estão com 80 e poucos anos, mas, numa idade em que a maioria de seus contemporâneos já se aposentou, continuam a fazer filmes na mais perfeita harmonia. Seu trabalho mais recente, "César Deve Morrer", é uma de suas produções mais ambiciosas em termos artísticos: uma ficção com elementos de documentário e teatro sobre a encenação de "Júlio César", de Shakespeare, num presídio de segurança máxima de Roma.
- Que tipo de filme é esse? - Vittorio, de 83 anos, questiona retoricamente durante entrevista concedida no ano passado, quando o longa foi exibido no Festival de Cinema de Nova York. - É um filme verdadeiro, uma ficção em que a realidade do presídio é fisicamente palpável.
Paolo, de 81, completa o pensamento: - A energia desse filme nasce da dor; você vê as paredes e as barras na sua frente; é a dor autêntica das pessoas que vivem dentro da cadeia.
Os Taviani, que escreveram e dirigiram 22 filmes, não são os únicos irmãos a trabalharem juntos no cinema, é claro. Na Europa há os belgas Dardenne; nos EUA, os Coen, os Wachowski, os Farrelly e os Hughes ‒ mas, sem dúvida, estão na estrada há mais tempo que todos os outros (desde 1954) e, para evitar brigas, criaram um método através do qual se alternam na direção das cenas individuais.
- Os técnicos que conhecem a gente perguntam: 'Quem vai primeiro hoje?' - conta Paolo. - E enquanto aquela pessoa está à frente, a equipe responde somente a ela. Se for eu, eles não podem chegar no Paolo para pedir ou perguntar alguma coisa. E quando acaba, o outro vai dar uma olhada no vídeo.
Vittorio continua: - É sempre o outro que fica assistindo ao vídeo. A nossa comunicação não é verbal e, apesar de telepática, é bem precisa. Se aquele que estiver no monitor começa a coçar a cabeça, o outro entende; fazemos então uma 'reunião silenciosa', corrigimos tudo e começamos de novo.
Com os roteiros, funciona mais ou menos da mesma maneira. A casa de um é bem perto da do outro, em Roma; assim, é comum se encontrarem num parque ou numa praça para discutirem o projeto do momento enquanto levam o cachorro para passear, aí vão para casa de um dos dois e começam a escrever, sentados à mesa, um de frente para o outro.
No caso de "César Deve Morrer", foi Fabio Cavalli quem ajudou a transformar a peça de Shakespeare num roteiro. Ele dirige uma companhia de teatro dentro do presídio Rebibbia, em Roma, e foi escalado para interpretar o mesmo papel no filme.
- A peça lida com temas como culpa e amizade, traição e conspiração, que também estão no centro da experiência de vida dos atores - explica, acrescentando que muitos desses homens estão cumprindo pena por terem cometido crimes que envolvem a Máfia e/ou a Camorra. - Muitos atores e diretores já foram a Rebibbia, mas até os Taviani irem lá, ninguém tinha compreendido que havia uma oportunidade real de fazer um filme num ambiente extraordinário, tão cheio de arte, consciência e a esperança de liberdade.
"César Deve Morrer" nasceu quando um jornalista amigo dos Taviani sugeriu que eles vissem o espetáculo da trupe de Rebibbia. A princípio, os dois hesitaram, pois achavam que ia ser como todas as peças amadoras a que já tinham assistido ‒ mas quando viram os presos recitando Dante e Pirandello, mudaram de ideia.
- Na mesma hora percebemos que era uma grande inspiração vinda dos céus - conta Vittorio. - Esses nossos compatriotas, na verdade, são figuras trágicas. Sabem tudo sobre crime e conspiração ‒ então por que não deixá-los contar a tragédia de Júlio César e Marco Antônio, uma história italiana, ou melhor, romana, que já faz parte do imaginário do nosso povo?
Os Taviani são conhecidos por adaptarem clássicos da literatura ocidental. Desde que lançaram o semiautobiográfico "A Noite de São Lourenço", um sucesso internacional de trinta anos atrás, já fizeram dois filmes baseados em Pirandello ("Kaos" e "You Laugh") e Tolstoi ("Noites com Sol" e "Ressurreição"), além da adaptação de "As Afinidades Eletivas" de Goethe e também uma minissérie para a TV italiana, "Luisa San Felice", baseada no romance de Alexandre Dumas.
- Eles são muito letrados, quase intelectuais, mas não catedráticos - explica Peter Bondanella, professor emérito da Universidade de Indiana e autor do livro "Italian Cinema: From Neorealism to the Present". - Eles vêm de um contexto típico de sua época, mas não tão comum hoje em dia, o da escola de cinema intelectualizada. Talvez seja por causa da política, mas o fato é que viram no cinema uma forma de mudar o modo de pensar das pessoas.
Entretanto, em muitos outros aspectos, "César Deve Morrer" é a volta às origens do trabalho dos dois irmãos. - Chegou uma hora que percebemos que faria mais sentido filmar com a mesma ousadia do começo - Paolo conta. - Contribuiu também o fato de que rodamos tudo em 21 dias, com pouco dinheiro, exatamente como fazíamos na juventude.
- Foi muito bom - ele continua. - Não houve tempo nem necessidade de parar para pensar em nada, em nenhum detalhe, para o produtor. Estávamos completamente livres e acho que isso ajudou muito no resultado final. Não usamos atores famosos e rodamos com câmeras digitais. Foi a primeira vez, uma bela novidade para nós.
Numa das primeiras cenas do filme, os presos aparecem fazendo teste para a peça e, conforme vão representando, a câmera vai se aproximando bem de seus rostos, expressivos e cheios de personalidade. Essa inclinação pelo destaque de faces comuns é marca registrada dos Taviani, inspirados por obras italianas neorrealistas como "O Corpo do Herói Paisano" de Roberto Rossellini.
O diretor de Rebibbia disse que facilitou a entrada e as filmagens dos irmãos porque queria que o filme mostrasse como "a vida nesse tipo de espaço afeta os presos". Carmelo Cantone, que é cinéfilo, acompanhou parte das filmagens, mas confessa ter ficado de queixo caído ao ver as imagens na telona.
- Quando Wim Wenders fez aquele filme sobre os últimos dias de Nicholas Ray, disse que, através da lente da câmera, podia ver coisas que nunca conseguiria a olho nu - recorda. - Bom, foi através da lente dos Taviani que consegui entender os presos e o que se passa à minha volta. Isso é cinema de valor pictórico, um cinema de representação feito no melhor estilo paisagístico.
Da extensa obra dos Taviani, o longa que mais se assemelha a "César Deve Morrer", segundo eles mesmos, é "Pai Patrão", a emocionante história de um jovem pastor analfabeto da Sardenha que se transforma em professor de Linguística e ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1977. Isso porque ambos usam atores profissionais e amadores, técnicas de documentário e são baseados na mesma sensibilidade.
Motivados pelo sucesso de público e crítica de "César Deve Morrer", que ganhou prêmio máximo do Festival de Berlim do ano passado, os irmãos planejam começar a trabalhar em outro filme em breve. - Quando a nossa capacidade de assombro se esgotar, quando não sentirmos mais emoções fortes, só então vamos parar - anuncia Paolo.
Vittorio concorda: - Temos certeza de que faremos outro filme, assim como temos certeza da morte. E digo isso num belo sentido realista, considerando a nossa idade.
The New York Times
Paolo e Vittorio Taviani: dois irmãos, romanos e cineastas
Aos 80 e poucos anos de idade, dupla continua ativa no mundo do cinema
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