Em suas memórias, o historiador Sérgio da Costa Franco recordou o inverno em que terminou de escrever a biografia Julio de Castilhos e sua Época: "Em nosso pátio, que era sombrio, o Serginho ergueu um boneco de neve da altura de um homem, que levou uma semana inteira para desfazer-se, muito depois de cessar a precipitação e aparecer o sol".
Promotor na comarca de Erechim naquele ano de 1963, casado e com quatro filhos (o nascimento do quinto, quatro anos depois, coincidiria com a publicação do livro pela Editora Globo), Costa Franco não era exatamente um autor iniciante. Havia publicado artigos em jornais e coletâneas e tinha dado, com sucesso, conferências sobre história do Rio Grande do Sul.
Nos anos 1960, a figura de Castilhos, chefe republicano abolicionista que, aos 30 anos, tornou- e o mais influente líder do novo regime no Estado, era vista sob luzes favoráveis pela maioria das correntes políticas e intelectuais gaúchas. Recém-finalizada, a trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, mostrava o clã Terra-Cambará aliado ao castilhismo de 1882 a 1923 - o defensor do Sobrado, Licurgo Cambará, neto do mítico Capitão Rodrigo, usava no chapéu uma fita com os dizeres "Viva o doutor Júlio Prates de Castilhos".
Morto havia mais de 60 anos, o Patriarca do Rio Grande, como o chamavam os prosélitos depois de morto, tinha sido objeto de um verdadeiro culto à personalidade no Estado na melhor tradição positivista: dava nome a um município, a ruas, praças e colégios. A ele se associavam a abolição, o ensino público fundamental, a liberdade de culto, a defesa do parlamento unicameral e a criação da Brigada Militar. Outros traços, como o autoritarismo (que fez do Rio Grande uma ditadura de partido único por praticamente 40 anos), a inclemência para com os inimigos e a prática de crimes de guerra entre 1893 e 1895, eram lembrados por poucos.
Passados 45 anos da publicação de Julio de Castilhos e sua Época, Costa Franco é o primeiro a apontar, como principal defeito da obra, a benevolência com o biografado. Os limites, aliás, haviam ficado claros passados poucos anos de sua publicação, quando soube que o livro fora lido com admiração pelo general-presidente Emílio Médici e pelo ex-governador exilado Leonel Brizola. Para o autor, Médici e o Brizola da época compartilhavam com Castilhos o desprezo pelas "instituições liberais". Isso não é suficiente para nublar os méritos do livro, que permanece como a principal biografia de um dos personagens centrais da história gaúcha.
A primeira edição de Julio de Castilhos e sua Época foi publicada em 1967 pela Editora Globo, com prefácio de Moysés Vellinho, e recebeu críticas favoráveis de Augusto de Carvalho, Walter Spalding, Carlos Rafael Guimaraens e Luiz Pilla Vares. Mais tarde, a Editora da UFRGS, sob a direção de Sergius Gonzaga, republicou o livro. Desde então, a biografia já teve três edições revistas pelo autor, sempre pela editora universitária. Atualmente esgotado, o livro pode ser encontrado em bibliotecas.
Zero Hora - Onde o senhor nasceu e se criou, quem eram seus pais e como foi sua educação?
Meus pais eram fluminenses, naturais de Petrópolis, no Estado do Rio. Meu pai,Alvaro da Costa Franco, veio para cá como juiz distrital. Quando nasci - fui o sétimo de oito filhos -, ele já tinha deixado a magistratura. Os juízes ganhavam pouco, e ele trocou a magistratura pela advocacia. Naquele tempo, tinha a figura da avulsão, que era uma espécie de licença para tratar de interesse, sem vencimentos. Ele se intitulava juiz de comarca avulso, era um bom marketing para advogado, profissão que ele exercia com toda a largueza. Quando meu pai morreu, em 1935, eu ia fazer sete anos. Ele morreu tragicamente, foi assassinado (em Jaguarão, por um homem que se sentiu prejudicado num processo sobre partilha de bens em caso no qual Alvaro atuava como advogado). Coisas da advocacia. Minha mãe, com aquela filharada toda e uma renda muito pequena, mudou-se para Porto Alegre e nos educou, todos estudaram. Estudei no velho Ginásio Estadual Anchieta, depois Colégio Anchieta, na Rua Duque de Caxias. Depois fiz o Curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia da UFRGS em 1948. Não posso dizer que sou autodidata porque tenho só graduação, nunca tive pós nenhuma, então não posso entrar nem na Universidade de Tucunduva. (Risos.) Aí, graças a Deus, resolvi fazer o vestibular para direito.Isso me permitiu uma carreira boa e vantajosa do ponto de vista financeiro.Aposentei-me em 1977, quando o general Ernesto Geisel estava na Presidência ameaçando fulminar a justiça com seus ukazes. Caí fora enquanto era tempo, já tinha tempo de serviço e me aposentei. Mas já atuava no jornalismo opinativo desde os anos 1950, e o risco de ser fulminado pelo AI-5 continuava sendo grande.
ZH - Nas suas memórias,o senhor deixa claro que sua família tinha uma tradição republicana.
Meu avô materno,Fernando FurquimWerneck, era florianista,foi prefeito do Rio nomeado por Floriano e deputado federal pelo Partido Republicano.
ZH - Seu avô tinha algum laço com os Werneck de Lacerda, do ex-governador do Rio Carlos Lacerda?
É primo remoto do meu avô.
ZH - Seu pai,por outro lado,era primo do historiador Sérgio Buarque de Holanda.O senhor o conheceu?
O Sérgio era primo irmão do meu pai, as mães eram irmãs. Eu o conheci quando me transferi para São Paulo, aos 19 anos, por um breve período.Arranjei um emprego,e a minha única ligação era o Sérgio. Eu os visitava nos finais de semana,era um cara muito bonachão.Esse Chico (o compositor Chico Buarque de Holanda) era gurizinho na época.O Sérgio foi uma boa ligação que tive, me prestigiou bastante, até me convidou para dar um curso de história do Rio Grande na Universidade de São Paulo.
ZH - Como o senhor decidiu escrever Júlio de Castilhos e Sua Época?
Eu tinha feito uma palestra sobre o sentido histórico da Revolução de 1892 a convite da Faculdade de Filosofia da UFRGS. Foi publicada numa coletânea chamada Fundamentos da Cultura Rio-grandense e acabou me abrindo caminhos. O convite foi da editora Edaglit, que pertencia ao Leôncio Basbaum. Ele estava fazendo uma série de história sobre fundadores da república, já tinha publicado as biografias do Quintino Bocaiúva, do Benjamin Constant, do Silva Jardim e me encomendou a biografia do Castilhos. Ele não me conhecia, a indicação partiu do Otto Alcides Ohlweiler, sem eu saber. Eu vivia em Erechim e recebi uma carta do Basbaum me oferecendo essa oportunidade. Há um livro muito bom dele, O Processo Evolutivo da História, que exerceu muita influência sobre mim, publicado em 1963,às vésperas do golpe militar.
ZH - Sua amizade com Ohlweiler vinha dos tempos do PCB?
O Otto Alcides era professor de química da UFRGS.Vou te dizer que não sei nada da vida dele. Era um cara muito respeitado, um teórico de bom nível.Na revista Felpa, mantida pela Federação de Estudantes, ele publicou um ensaio chamado Aspectos do Pensamento Mágico, sobre religião. Depois, já como revisionista declarado, ele publicou Materialismo Histórico e Crise Contemporânea.Nunca tive contato maior com ele.
ZH - Quando Basbaum fechou a Edaglit,após o golpe,o senhor já tinha concluído o livro?
Sim,ele me enviou uma carta dizendo que teria de fechar a editora. Eu tinha levado uns dois anos para concluir o livro, estava praticamente pronto.
ZH - Como era o seu processo de trabalho na composição do livro?
Em Erechim, eu estava longe dos arquivos. O livro peca já por isso. Tive de escrevê-lo com fontes secundárias, a bibliografia existente.As biografias existentes, como a do Othello Rosa, eram todas laudatórias. Havia também aqueles livros sobre a Revolução Federalista, todos parcializados, de um lado e de outro. Havia alguma coisa de correspondência dele publicada na época, com Ernesto Alves e AurélioVerissimo de Bittencourt.As filhas de Carlos Barbosa me mandaram alguma correspondência a meu pedido. Mas o livro é muito pobre de fontes primárias, basicamente um refogado da bibliografia existente na época,a favor e contra.
ZH - Por outro lado, era a primeira tentativa de fazer uma biografia não partidária.
É verdade, esse é um mérito, foi isso que me agradou de um modo geral. Quando fiquei sem editora, procurei a Globo, por intermédio de amigos aqui de Porto Alegre, como Moysés Vellinho, que tinha prestígio na casa. Meu contrato com a Globo é de 1965, a previsão era de que fosse publicado em 1966, mas acabou saindo em novembro de 1967, sem nenhuma promoção. O procedimento da Globo foi lamentável nesse aspecto. Hoje, não se lança livro nenhum dessa maneira. Deixaram passar a Feira do Livro, que ocorria em outubro, e não houve nenhuma cobertura de imprensa. Dois anos depois, a prestação de contas foi assim:"Estoque no lançamento: 3 mil. Estoque atual: mil. Sua cota: tanto". Sem explicações de nada. Pedi um demonstrativo para saber onde e para quem tinha sido vendido o livro, eles se ofenderam, disseram que era a primeira vez que um autor duvidava da lisura da Globo. Queriam pagar os exemplares vendidos e me devolver todo o resto. Eu disse:"Não, vocês têm um compromisso comigo, eu escrevi o livro e o entreguei para vocês, que têm a obrigação de distribuí-lo". Quem lucrou com a obra foi a Sulina, que comprou o estoque restante e vendeu-o muito bem. O livro se esgotou.
ZH - E depois, a Editora da UFRGS fez uma segunda edição.
Sim,porque justamente a essa altura achei o livro imperfeito.Eu tinha tratado de forma muito amena o autoritarismo de Castilhos, e me dei conta disso quando o livro saiu.Foi até engraçado. Brizola estava no exílio no Uruguai,e um repórter do Diário de Notícias foi até lá entrevistá-lo e disse que ele estava lendo o meu livro. Apareceu a fotografia do livro em cima da mesa dele e tal.Grande golpe de marketing. (Risos.) Uns dois anos depois, Poty Medeiros, que se dava comigo,me disse:"Olha,dei o teu livro para o general Médici,ele está gostando muito". Pensei que tinha de rever o livro,porque se agradava simultaneamente ao Brizola e ao Médici, havia algo de errado. (Risos.) Desde então sou revisionista do meu livro, tanto que estava esgotado e eu segurava as propostas de reedição.Em 1988,o Sergius Gonzaga estava na direção da Editora da UFRGS e insistiu muito. Eu dizia que tinha de fazer acréscimos, mas ele discordava:"O livro foi bem sucedido assim como está".A segunda edição teve pequenos acréscimos, entre eles o episódio do processo do Castilhos contra o Alcides Lima. Eram amigos, ex-colegas na Faculdade de Direito, e o Lima se recusou a fazer um júri com voto a descoberto, como era o processo penal segundo a Constituição castilhista. Disse que era inconstitucional, que feria a regra federal, e fez conforme a norma federal. Castilhos mandou processá-lo, e Lima perdeu o cargo. Depois ganhou por habeas corpus,mas só no Supremo Tribunal Federal,porque o Tribunal aqui o condenou.Foi uma brutalidade incrível. Lima era um ex-companheiro de propaganda republicana, ex-deputado constituinte, um cara de valor intelectual.
ZH - O senhor não sabia disso nos anos 1960?
Não,eu não tinha dados maiores, só informação imprecisa, e me omiti. Um advogado de Pelotas, Joaquim Duval, que tinha sido deputado estadual pelo PSB e era professor de direito em Pelotas, fez uma resenha elogiosa ao livro, mas lamentando que eu tivesse esquecido esse episódio importante.Acrescentei-o na segunda edição. O livro é como um filho que nasce torto.A gente não vai desprezar,não é? Ainda mais se fez sucesso.
ZH - Passados quase 45 anos da publicação,o senhor crê que o tom geral do livro, de respeito pela figura de Castilhos,é defensável?
Ele é uma figura admirável pela coerência e pela firmeza ideológica. Eu escrevia num momento em que não se acreditava em liberalismo. Jango estava querendo fechar o Congresso, e eu mesmo estava um pouco nessa linha. O clima da época era de um certo menosprezo pelas instituições liberais.
ZH - Isso também vale para os responsáveis pelo golpe de 1964.
Sim,o outro lado também.Tinha havido Revolução Cubana, com centenas de mortos no paredón sem julgamento, e isso tudo influiu na minha geração. Eu achava que os procedimentos de Castilhos eram em nome da defesa da República. Depois, quando tive contato com o arquivo de Borges de Medeiros e vi o que era a ditadura castilhista, mudei de ideia. O castilhismo ganhava eleições nas quais a oposição não tinha um único voto na região de imigração alemã e italiana, onde não havia fiscalização da oposição. Em Veranópolis, houve uma eleição na qual o resultado foi de cerca de 1,5 mil votos a zero.
ZH - Um resultado digno de Saddam Hussein.
Costa Franco - Depois, colhi depoimentos de história oral. Hélio Mariante, ex-oficial da Brigada Militar e integrante do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul,me disse que,na infância, o avô o chamava para assinar as atas eleitorais e lhe recomendava que disfarçasse a letra. Dizia o Hélio: "Era só copiar os nomes dos eleitores, e eu escrevia ora para a direita, ora para a esquerda".(Risos.) Borges soube que um promotor de Quaraí tinha votado em Ruy Barbosa e não em Epitácio Pessoa para presidente na eleição de 1919 e demitiu-o no dia seguinte. Era uma eleição federal, mas o promotor tinha se afastado da orientação do partido, que era de votar em Epitácio. Em Cruz Alta, o chefe castilhista José Gabriel da Silva Lima se rebelou contra a indicação de Germano Hasslocher para deputado, porque o candidato tinha pertencido ao Partido Liberal (de Gaspar Silveira Martins) até a Revolução de 1893. Castilhos afastou Lima da chefia do Partido Republicano e privou-o de qualquer influência política. Só muitos anos depois, Borges, que era um sabido, recrutou alguns desses que Castilhos tinha escorraçado.
ZH - Levando em conta a ação de Castilhos de 1893 a 1895, o senhor crê que ele poderia ser qualificado daquilo que Gilberto Freyre chamava de"homem de bem"?
Não, ele foi um repressor inconsequente. Há um telegrama dele: "Adversário não se poupa nem se dá quartel. Castigue nas pessoas e nos bens, respeitando famílias". Esse aspecto não tem desculpa, embora ninguém tenha desculpa na época porque todos agiam com violência de parte a parte.Agora, o marketing dos republicanos sempre foi melhor. Recentemente, li num livro que, ao final da Revolução de 1893, os federalistas praticaram degola de maneira indiscriminada, fosse contra os adversários republicanos, fosse contra o próprio povo, pilharam os ranchos e estupraram as mulheres. Meu Deus, isso foi de parte a parte, e inclusive as maiores degolas foram promovidas pelo lado republicano, como a de Boi Preto.
ZH - Mesmo EricoVerissimo faz Licurgo usar no chapéu uma fita com os dizeres "Viva o Dr. Júlio Prates de Castilhos". É verdade que Erico dizia que Licurgo não lhe agradava...
Costa Franco - A glorificação de Castilhos é algo que existe até hoje. Começa no dia seguinte à morte dele, quando o gov rno do Estado baixa um decreto mandando erguer o monumento da Praça da Matriz e custear o túmulo dele. Castilhos passa a ser o ícone, o santo do Partido Republicano, uma figura incontestável. Era o "Patriarca", título, aliás, criado aqui. Fui de certa forma vítima dessa glorificação e entrei na mesma linha. Por outro lado, ele tinha grandes qualidades como líder político.A carta famosa à Devoção do Menino Deus na qual explica sua posição em face da religião, o respeito que fez os positivistas votarem ao catolicismo como expressão civilizatória, são interessantes. Nisso foi diferente de Borges, que nunca escreveu coisa nenhuma a não ser as mensagens oficiais. Quando escreveu, foi um livro para se desdizer, O Poder Moderador na República Presidencial, em defesa do parlamentarismo. Presidencialista toda a vida, depois de derrotado na Revolução de 1932, defende o parlamentarismo!