Zero Hora - Onde o senhor nasceu e se criou, onde estudou e quem eram seus pais e irmãos?
Ruben Oliven - Nasci e me criei em Porto Alegre. Estudei por sete anos no Colégio Farroupilha, três anos no Colégio Israelita e dois anos no Colégio Julio de Castilhos. Meu pai, Klaus Oliven, empresário, nasceu em 1918 em Berlim,Alemanha,e minha mãe,Susi Oliven,professora de inglês,também berlinense, nasceu em 1919. Sendo judeus alemães, vieram para o Brasil com as famílias, meu pai em 1939, e minha mãe, em 1942, depois de passar pela Inglaterra. Meus avós maternos morreram em campos de concentração. Meus pais haviam se conhecido na juventude, tiveram uma grande paixão e ele a trouxe para o Brasil. Meu pai morreu em setembro de 2010. Éramos seis filhos: Judith, professora de inglês; eu; Daniel, médico falecido em 1999; Miguel, arquiteto; Miriam, tradutora e intérprete que vive em Berlim; e Gabriel, jornalista.
ZH - Como era o seu ambiente familiar?
Oliven - Era multifacetado. Judeus alemães não viviam no Bom Fim (bairro de Porto Alegre onde se radicaram imigrantes judeus da Europa Central e Oriental). Me criei no bairro Auxiliadora, onde praticamente não havia judeus.Também tendiam a colocar os filhos no Colégio Farroupilha, para dar um cunho mais alemão à educação, e não no Israelita. Meus pais também viajavam muito, e meu pai gostava de jogar tênis. Não eram de ir com frequência à sinagoga, mas até hoje, no Shabat, vamos à casa de minha mãe, acendem-se as velas e se faz a bênção do vinho e do pão.A relação com o judaísmo tinha mais a ver com a história judaica. Meus pais valorizavam muito a vida intelectual e tinham muita desconfiança em relação a qualquer pessoa que se achasse autoridade.A única autoridade respeitada era a intelectual. O doutor Herbert Caro (intelectual, tradutor de Goethe e Hermann Hesse), por exemplo, merecia respeito. Era praticamente impossível tirar dinheiro do meu pai para comprar Coca-Cola, mas para livro era facílimo. (Risos.) Em casa falávamos uma mistura de línguas, até hoje é assim. Principalmente português e alemão, e houve uma época em que meus pais inventaram de só falar inglês. A gente ganhava um pila se falasse inglês (Risos.)
ZH - Que autores marcantes o senhor leu na juventude?
Oliven - Muita literatura e ficção: Kafka, Sartre, Hermann Hesse, Roger Martin du Gard. E os brasileiros, também, Machado de Assis.
ZH - Como foi a sua opção pelo estudo de humanidades?
Oliven - Eu gostava das grandes questões sociais, como desenvolvimento, dependência, revolução, e era mais ou menos natural que fosse para as ciências sociais.A antropologia veio a fazer parte da minha vida porque sempre vivi em círculos muito diferentes. Morava na Auxiliadora, que era um bairro misto, estudava no Farroupilha conhecia parte da comunidade judaica. Em nossa casa circulava muita gente, de forma que tive de equilibrar essas pessoas que eram muito diferentes. Até hoje me dou com pessoas muito diferentes entre si e sempre tive de juntar tudo, e aí entrava o lado cultural.A antropologia foi um caminho natural porque lidava com as diferenças, outros enfoques,outras culturas,falar línguas diferentes, se relacionar com pessoas diferentes, viajar. Meus pais ficavam três ou quatro meses viajando e, ao retornar, traziam fotos, mostravam. Havia essa inquietude e o sentimento de que o mundo era muito maior que Porto Alegre. Por outro lado, sempre fui um tipo mais urbano, e ao fazer antropologia, queria entender como eram as cidades. Essa foi a minha primeira encarnação: fiz vestibular para Ciências Sociais Economia em 1964, cursei as duas faculdades, e depois mestrado e doutorado sobre urbanização. No mestrado, na UFRGS, pesquisei a Vila Farrapos, e o doutorado, na Universidade de Londres, resultou num livro, Urbanização e Mudança Social no Brasil (Vozes, 1980). Eu queria entender por que, nas cidades, havia culturas tão diferentes e,ao mesmo tempo,tantas coisas em comum.
ZH - Como o senhor percorreu o caminho do estudo das cidades à questão da identidade gaúcha, tão relacionada ao espaço rural?
Oliven - As cidades me interessavam sobretudo como fenômeno cultural. Na época, havia uma série de teorias que diziam que morar em cidade homogeneizava as populações. Eu sempre desconfiei que não era bem assim. Em Porto Alegre, comparei cinco bairros diferentes e mostrei que podia haver homogeneização em algumas áreas, mas em outras a cidade acabava propiciando diferenças. Essa foi a minha tese de doutorado na Inglaterra, onde passei quatro anos. Antes, tinha morado um ano em Israel, viajado pela Europa, conhecia alguma coisa do Brasil e praticamente nada do Rio Grande do Sul. Eram os Anos de Chumbo, comecei a pensar sobre o Brasil e a cultura brasileira e, ao terminar o doutorado, escrevi e publiquei um artigo, Classe e Cultura em Cidades Brasileiras, praticamente o último capítulo da minha tese de doutorado defendida na Universidade de Londres, que era uma espécie de programa do que eu queria fazer.
ZH - O senhor retornou ao Brasil depois de concluir o doutorado?
Oliven - Sim, e aconteceu uma coisa interessante: o Brasil tinha se modificado muito nos quatro anos em que fiquei fora. Quando saí, havia uma repressão muito forte, não se podia falar de quase nada,e quando voltei estava começando a abertura, a contestação e algo novo que era a violência urbana, sobre a qual todos falavam.Vários novos atores sociais estavam emergindo: feminismo, movimento gay, tradicionalismo, evangélicos, donas de casa contra a carestia. Publiquei um livro chamado Violência e Cultura no Brasil (Vozes, 1982) em que discuti estes dois temas. A questão da cultura começou a emergir no cenário nacional.Vários grupos emergentes diziam:"Nós somos brasileiros desde o tempo em que Getúlio Vargas desenvolveu a ideia de brasilidade,mas faz diferença ser brasileiro e mulher, brasileiro e gay, brasileiro e gaúcho". Todos estavam tratando das diferenças e da cultura,e as diferenças eram sempre construídas a partir da cultura. Ocorre que a intelectualidade brasileira mais progressista - de esquerda, se quiser - tinha uma desconfiança muito grande em relação à cultura. Era algo a ser deduzido mecanicamente da infraestrutura, não era preciso estudar muito, era uma decorrência automática. Se eu soubesse como tu te inseres no processo produtivo, saberia dizer como é a tua consciência. A cultura não era vista como uma coisa muito importante a ser estudada. Quando veio a abertura, a questão cultural veio à tona. Isso coincidiu com um enorme crescimento da antropologia, até então um ciência social marginal. Essas questões me interessaram, mas várias pessoas começavam a me dizer:"E a cultura gaúcha?". E eu não sabia dizer nada sobre isso, não conhecia a cultura gaúcha, não tinha viajado pelo Rio Grande do Sul.
ZH - O senhor não sabia ou era algo que o senhor tinha relegado a segundo plano?
Oliven - Era uma mistura de coisas. Eu não tinha um histórico de vivência gaúcha. Minha família não tinha raízes rurais, não se tomava chimarrão, não se conheciam expressões gaudérias.
ZH - Por outro lado, o Colégio Julio de Castilhos, onde o senhor fez sua formação secundária,foi o berço do tradicionalismo.
Oliven - Não sabia disso quando estudei lá, não tinha a menor ideia. Mas aí entra o segundo aspecto, algo de que os tradicionalistas reclamam com razão: o estudo das coisas do Rio Grande do Sul, durante muito tempo, foi considerado por nós uma coisa menos nobre. O próprio Barbosa Lessa diz que tinha aulas no Julinho sobre os gregos e os egípcios e,quando perguntava sobre o Rio Grande do Sul, nada. Ele diz que a única pessoa que valorizava o Rio Grande era o professor Dante de Laytano, e é verdade. Ele foi o pioneiro, tanto que, antigamente, o ensino universitário de história se dedicava muito mais a civilizações antigas. Na época, as coisas do Rio Grande do Sul não eram bem vistas, e um dos que refletia isso era Teixeirinha. Uma ex-aluna minha fez uma tese de doutorado sobre Teixeirinha na qual mostrava que ele era o cara que mais vendia discos no Brasil, fazia um sucesso enorme, e a crítica musical tratava-o como brega. Acabei me interessando pelo assunto, e isso coincidiu com um renascimento do gauchismo no começo da década de 1980. Havia proliferação de festivais de música, de rádios tocando música gauchesca 24 horas por dia - antigamente, para tu ouvires isso, só muito cedo ou, em algumas rádios no final da tarde -, de editoras, feiras, CTGs, o nativismo se opondo ao tradicionalismo. Comecei a ler sobre o Rio Grande do Sul, li muita coisa antiga que tinha sido escrita e descobri que muitos falam sobre o Rio Grande do Sul sem entendê-lo.Acontece em todas as áreas. Fui com alunos a festivais de música como Califórnia da Canção Nativa e Musicanto, visitei pessoas, comecei a estudar a liderança do movimento tradicionalista, que até então nunca tinha sido estudada em uma universidade. Não só entrevistei pessoas como Paixão Côrtes e Barbosa Lessa como criei um seminário chamado Sociedade e Cultura no Rio Grande do Sul e levei Lessa para dar um depoimento que foi sensacional. Foi esse caminho que resultou em A Parte e o Todo.
ZH - E qual foi a repercussão?
Oliven -As pessoas que me conheciam no resto do Brasil brincavam:"Da próxima vez você vai vir pilchado" ou "Você fez um nome estudando cultura brasileira e agora está retrocedendo para o regional". Eu dizia que não estava retrocedendo, e sim indo para uma etapa mais à frente porque havia um fenômeno chamado globalização, e um dos seus efeitos era a recriação do local. O Rio Grande é um dos exemplos mais ricos disso, porque é um território e uma região muito peculiares, no sul do país, na fronteira com o Uruguai e a Argentina, poderia ter pertencido à coroa espanhola ou à coroa portuguesa,foi uma república independente. Meu interesse era entender o que estava acontecendo aqui, mas também explicar o que isso significava em termos de Brasil como nação. Por que somos um país tão grande que não se desmembrou como a América hispânica? Estudei textos antigos como o Manifesto Regionalista, de Gilberto Freyre, discuti a formação do Brasil nação na época de Vargas, como se compara isso com outros países. Resolvi mostrar que isso era parte de um processo pelo qual outros países também passaram e que se acentua no momento em que o mundo se globaliza. No começo, as pessoas diziam que a globalização estava tornando todo mundo igual, e, assim como eu havia argumentado que a urbanização não tornava todos os habitantes iguais, afirmei que, com a globalização, as pessoas iriam enfatizar mais as suas peculiaridades, e uma coisa não excluía a outra.A nação não está para desaparecer - qualquer pessoa que viaje de um país para outro e passe pela alfândega sabe muito bem que as nações não desapareceram. Na segunda edição de A Parte e o Todo, acrescentei a análise da disseminação do gauchismo por outros Estados do Brasil e pelo Exterior, fazendo com que ele se torne, segundo seus líderes, o maior movimento de cultura popular do mundo ocidental.
ZH - Como ocorre essa disseminação?
Oliven - A história do gauchismo está ligada à região da Campanha, mas, de saída, essa ideia entra em áreas onde não havia pecuária nem a figura do gaúcho, ou seja, a zona de colonização alemã e italiana. O segundo CTG (o primeiro foi o CTG 35, em Porto Alegre) surgiu em Taquara, e isso deu um nó na cabeça dos fundadores do movimento. Quando criaram o 35, imaginaram que seriam criados CTGs na Campanha, e isso não acontecia, mas apareceu um em Taquara! A primeira questão é: por que se cria um CTG em Taquara, numa região de imigrantes alemães? Uma das explicações é que, depois da II Guerra, alemães e italianos eram considerados cidadãos do Eixo, e criar um CTG era uma maneira de se tornar não só brasileiro como gaúcho. Em segundo lugar, o gauchismo se associa fortemente ao cavalo, e, na Europa, cavalo era montaria de nobre, não de camponês. Para um camponês, ter um cavalo de sua propriedade lhe permitiria ascender social e simbolicamente. Não se decanta a figura do colono, nem mesmo hoje, e sim a do gaúcho.O gauchismo fez um sucesso enorme nas áreas alemãs e italianas. Há também uma tradição de os filhos de agricultores italianos saírem do Rio Grande e irem, via Santa Catarina e Paraná, até Piauí, Rondônia, Roraima, onde compram terras em áreas baratas e começam não a criar gado, mas a plantar trigo, soja, trabalham muito, são bem-sucedidos, se veem como pioneiros e aí se consideram gaúchos, criam CTGs. No Japão tem um CTG chamado Sol Nascente, criado por descendentes de japoneses, o que, do ponto de vista antropológico,é algo fantástico.Pega-se uma tradição que nasce num contexto, que se espalha pelo Brasil e vai para o Japão. É o que prova que as ideias e a cultura viajam, saem de um lugar, vão para outro. Descendentes de japoneses vão para o Japão porque,entre outras coisas,aqui não eram considerados brasileiros, e ao chegar se dão conta de que não são japoneses e que, apesar de terem a aparência física de japoneses, não falam bem a língua. Foram"contaminados" pela cultura brasileira, não têm aquelas formas de polidez. Transformam-se em brasileiros e, se são do Rio Grande, se transformam em gaúchos. É um processo que dá a volta.
ZH - O movimento de criação de CTGs pelo mundo vai prosseguir?
Oliven - Quando escrevi o livro, notei que estava aumentando o número de CTGs no Exterior. Atualmente, mais de um terço dos CTGs já está situado fora do Rio Grande do Sul. Isso também faz com que o gauchismo seja um fenômeno de emigração. Essas pessoas saem do Estado e vão se transformando em gaúchos por se acharem bem-sucedidos. Para complicar, os oriundos de Santa Catarina e Paraná também são vistos como gaúchos. Isso faz com que, nos CTGs, pelo Brasil afora, tenha muita gente que não nasceu no Rio Grande do Sul e provavelmente nunca esteve aqui.Alguns dos tradicionalistas que entrevistei, sem serem intelectuais acadêmicos, eram pessoas que liam e escreviam. Um deles me disse: "Sabe, professor, isso que esse historiador, o Hobsbawm (Eric Hobsbawm, coorganizador de A Invenção das Tradições), disse no livro dele, que é importante inventar a tradição" - essa era a leitura que eles faziam - "isso a gente já sabia há muito tempo, e foi por isso que a gente inventou o Tradicionalismo". Eles dizem que inventaram a tradição. Barbosa Lessa diz:"Tínhamos de fazer uma apresentação musical com Paixão Côrtes, chamamos as irmãs e primas e inventou-se a dança do pezinho". Isso pode parecer anedótico, mas não é tanto. Lessa me contou outra história fantástica: ele compôs Negrinho do Pastoreio, que as pessoas cantam e nunca dizem que é dele. Um dia a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) se apresentou na escola em que a filha estudava, a mulher dele, dona Nilza, foi assistir e, lá pelas tantas, disseram: "Agora, de autor anônimo, vamos interpretar a música Negrinho do Pastoreio". Ela achou que era outra versão, e quando viu que era a do marido, se levantou e disse: "Não é de autor anônimo, é de Barbosa Lessa, e eu durmo com ele de noite". Foi uma gargalhada.As pessoas acham que aquilo é folclore autêntico.Vem de muito tempo, e eles estão sempre dizendo: "Não, nós é que criamos".Nesse sentido,também é algo de muito sucesso.
ZH - São de uma honestidade intelectual notável.
Oliven - São honestos. Outra coisa fantástica que Barbosa Lessa disse é que, quando morou em São Paulo, já formado em Direito, se matriculou na Escola de Sociologia Política, que existe até hoje e era muito mais forte naquela época. Assistiu dois ou três meses de aulas, mas eram muito chatas, e ele desistiu. Já de volta ao Rio Grande, os amigos dele estavam organizando o 1º Congresso Tradicionalista, e os congressos antigos sempre tinham uma tese a ser discutida. Disseram ao Lessa: "Tu tens de escrever a tese matriz do Tradicionalismo"."Mas quem sou eu?" "Ué, tu vieste de São Paulo, estudaste sociologia, nós não estudamos nada, é contigo". E ele disse que foi para Piratini, onde seu pai tinha um sítio, e resolveu olhar dois livros usados nas aulas, e um deles era um livro clássico na época, O Homem - Uma Introdução à Antropologia. Imagina o que as feministas não diriam hoje de um título como esse! O outro, também americano, era Teoria e Método da Sociologia. Ele começou a ler e disse que aquilo foi uma revelação porque os autores eram obcecados, nos EUA, com a desagregação cultural supostamente provocada pela vida em cidades.As primeiras teorias sobre urbanização eram de que a cidade iria extinguir os costumes antigos e causar anonimato, solidão, delinquência.As teorias da desorganização, fortíssimas na época, basicamente difundidas pelos cientistas sociais da Universidade de Chicago, estavam naqueles livros. Lessa diz: "É genial, esses caras fizeram o diagnóstico perfeito, mas eles não têm a solução, e nós temos". Diz isso com uma certa pureza: o culto à tradição é a solução para essa desagregação. Uma vez, nos EUA, apresentei um trabalho e fiz uma provocação dizendo: olha, o lugar em que a Escola Sociológica de Chicago teve mais repercussão foi o Rio Grande do Sul. O positivismo também teve muito mais influência aqui do que na França, o que prova, de novo, que as ideias viajam, são modificadas. Lessa pegou aquilo e disse: "Isso aqui me serve". Foi lá e usou na tese matriz. Ele me disse:"De sociologia só li aqueles dois livros e o Dicionário Globo de Sociologia". Pode-se dizer o que quiser daquele grupo fundador, mas eles são muito sinceros em dizer: "Nós inventamos sim, e inventamos da nossa cabeça". As pessoas acham que é folclore autêntico, mas eles não dizem isso em nenhum momento.