Cultura - Onde o senhor nasceu e cresceu? Quem eram seus pais? Onde estudou?
Moacyr Flores - Meu nome completo é Moacyr Flores e nasci em 14 de janeiro de 1935, ano do centenário da Revolução Farroupilha, na Rua Benjamin Constant, em Porto Alegre, numa casa que não existe mais, em frente ao Cine Orfeu, depois Astor. Me criei na rua de trás, a Nova York. Fiz o primário no Grupo Escolar Daltro Filho, onde os professores me diziam que deveria ser engenheiro porque tinha facilidade para matemática.
ZH - E tinha mesmo?
Flores - Sou cartesiano, né? (Sorri.) Meu filho e meu neto também herdaram essa facilidade. Quando eu ainda não estava no colégio, minha mãe comprava livros e lia para mim.Já tinha uma pequena biblioteca antes de ser alfabetizado. Outra coisa que ela fazia era ler para mim o Correio do Povo, aquele jornal grandão que a gente lia "crucificado". Isso me deu o gosto pela leitura. No segundo ano primário, tínhamos de tirar um livro na biblioteca e, aos sábados, escrever no quadro as palavras que
não havíamos entendido e que a professora então explicava. O primeiro livro que tirei foi
Os 12 Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato. Como a minha mãe sempre me trazia esses livros, já no primário eu li romances para adultos. Praticamente não passei por livros infantis. Os únicos foram os de Lobato, que guardei para meus filhos.Ao ler O Poço do Visconde, vi que era uma tremenda crítica à política brasileira do petróleo, não era infantil coisíssima nenhuma. (Risos.) Depois, na universidade, vou trabalhar com esses livros dizendo: "Ó, não é livro infantil, é livro de crítica ao Brasil".No 5º ano,a professora ficou apavorada porque eu tinha lido Salambô,de Gustave Flaubert,e disse que não podia ler isso.
ZH - Como era o seu ambiente familiar?
Flores - Meu pai, Anastácio Flores, era escultor, trabalhava com gesso e cimento,era um verdadeiro artista. Minha mãe,Alice, só tinha completado o 4º ano primário, mas era uma voraz devoradora de livros. Meu pai era anarquista. O movimento operário no Rio Grande do Sul foi organizado pelos anarquistas, e ele era operário. Não acreditava nos socialistas ("Todos burgueses") nem nos comunistas ("Nunca pegaram na foice e no martelo e querem ensinar os operários"). Os anarquistas tinham uma política muito diferente daqueles que hoje se dizem anarquistas e não o são. Meu primeiro trabalho foi servente de obra, não nasci professor.Aos 14 anos já estava trabalhando
para estudar à noite. Segundo meu pai, eu tinha de estudar para poder discutir
com o patrão. Se não tivesse estudo, o patrão iria me enganar. Talvez eu seja contestador porque fui criado dessa maneira. Os anarquistas se reuniam no quintal de nossa casa na Nova York para beber cachaça com bitter (eu ia à venda com uma canequinha para comprar a bebida) e para falar de política,de teatro.
ZH - De teatro?
Flores - Os anarquistas eram cultos. Um dia vi uma foto de Carlos Cavaco (1878 - 1961,
advogado e tribuno socialista) e pensei: "Mas esse era o Cavaco que ia à minha casa". O pessoal gozava com ele por ser socialista.Os anarquistas tinham uma ideologia de não aceitar interferências.Tanto é que diziam que eu devia ir à missa. O resto era bobagem, mas eu tinha de ouvir o sermão porque havia moral e, se eu não tivesse moral,precisaria de um chefe.
ZH - Esses anarquistas não eram ateus.
Flores - Não, eles eram anticlericais. Mas, no cristianismo,o importante era a moral.
ZH - O senhor começou a trabalhar aos 14 anos porque precisava ajudar em casa?
Flores - Sim, éramos uma família pobre, e a idade em que todo garoto ia trabalhar era 14, 15 anos, caso contrário seria considerado vagabundo.Tinha de trabalhar e entregar todo o dinheiro. Se precisasse, tinha de pedir. E era obrigado a estudar também.
ZH - Como foi a sua passagem do ensino secundário à universidade? Por que escolheu a faculdade de história?
Flores - A escolha de história é interessante. Parei de estudar ao terminar o científico porque tinha de trabalhar, a mãe estava sozinha, eu era o mais velho e tinha de ajudar. Meu pai morreu em 1951. Comecei a namorar a Hilda (Hilda Hübner Flores, professora e historiadora, mulher de Flores), que fazia dois cursos superiores (Filosofia e Serviço Social), e eu só com o Científico. Me senti inferior. (Risos.) Quando começamos a namorar, em 1959, ela veio com Aristóteles e eu me contrapus com Sócrates. (Risos.) Eu trabalhava como desenhista na Divisão de Organização da Secretaria de Administração do Estado, e abriu um concurso para cartógrafo, que ganhava melhor do que desenhista. Para se inscrever, era preciso ter completado ou estar matriculado do curso de Cartografia ou cursar Geografia. Resolvi fazer Geografia e História na PUCRS, onde era um curso único (na UFRGS, eram separados). Me entusiasmei com história e não prestei o concurso. Resolvi me tornar professor, que na época dava direito a um salário muito bom.
ZH - O senhor ainda desenha?
Flores - É, algumas coisas assim. (Indica telas nas paredes da sala.) Parei porque a pesquisa histórica requer tempo, assim como o desenho. Eu trabalhava 12, 14 horas por dia fazendo desenho técnico, educativo. Fiz umas três exposições de pintura e outras três de cerâmica. Minha filha tem formação em cerâmica e faz mestrado em Artes Visuais na UFRGS. Passei a ela a parte técnica, e ela me passou a
cerâmica.Fizemos uma troca.
ZH - O senhor se casou em que ano?
Flores - Em 1962. Eu estava no terceiro ano da PUCRS. Abriu concurso para professor
estadual com vaga no Interior. Nós (Flores e Hilda) nos candidatamos. Fui com duas nomeações para duas disciplinas, e ela com uma de Serviço Social e outra de professora. Tínhamos quatro vencimentos. Para recémcasados, era uma maravilha. Naquele tempo, era preciso começar no Interior e só depois de dois anos era possível ser transferido para Porto Alegre. Fomos nomeados para São Borja, ficamos lá por três anos e meio. Quando fomos transferidos para a Capital, prestei concurso no meu colégio, o Julio de Castilhos, onde cheguei a vice-diretor. Em 1968, fui convidado
pelo Dante de Laytano (professor, criador da disciplina de História do RS na UFRGS
e na PUCRS) para assumir as cadeiras dele como professor auxiliar. Em seguida, saí do Julinho para ser historiógrafo do Arquivo Histórico do Estado.A rotina me deixou num estresse muito grande, porque eu estava preparando a minha dissertação.Acabei fazendo concurso para professor na UFRGS, no final dos anos 1970,e saí do Arquivo Histórico.
ZH - Como era sua relação com Dante de Laytano?
Flores - Ele era catedrático de história na PUCRS. Só dava a primeira e a última aula, o restante era com o auxiliar. Eu tinha sido dele na PUCRS, onde me formei em 1964. Na época em que ele me convidou, eu dava aula em três colégios (também era professor do município e do Colégio das Dores, particular). Só via a família ao meio-dia, porque chegava em casa à meia-noite e os filhos já estavam dormindo. O que eu aprendi sobre história, aprendi com Dante. Não nas aulas, mas na casa dele. Ele me convidava para ir à casa dele na Avenida Carlos Gomes "marcar o ponto". Íamos eu e a Hilda, com as crianças. Quando não ia, ele me telefonava: "Olha, vou te cortar o ponto". Ele me ensinou a manejar fontes, documentos, bibliografia, quem era Fulano ou Sicrano - porque ele tinha conhecido todos os historiadores anteriores. Dizia: "O Aurélio Porto tem tal ponto de vista, o Varela tem tal". Quando não prestava, dizia: "Esse é um chato, pode deixar de lado". Ele nos convidou para ser testemunhas do segundo casamento dele.
ZH - Como o senhor define o papel dele na historiografia rio-grandense?
Flores - Ele era formado em direito, era do tempo em que não havia curso de história. Passou de uma fase positivista, a dos primeiros escritos, à história cultural, muito influenciada pelo Franz Boas (antropólogo americano). Nesse momento, começa a pesquisar folclore, música, literatura. Faltava a ele um método, porque ele não tinha formação em história. A escrita dele não segue uma sequência. É confiável porque se baseia em documentos. Ele mesmo me dizia: "Olha,Moacyr,tu tens de
pesquisar documentos". Ele trabalhava com documentos, só que muitas vezes não citava a fonte. Só o vi uma vez brabo. Era um bonachão, um gentleman,tratava todo mundo com urbanidade. Não atacava os outros, mesmo quando atacado.O melhor livro dele é História da República Rio-grandense (1936).Em Modelo Político dos Farrapos, cito esse livro ao lado de outros três que considero os melhores: Notas
ao Processo dos Farrapos (1933 a 1935), de Aurélio Porto, História da Grande Revolução (1933), de Alfredo Varela, e A Revolução Farroupilha, de Tasso Fragoso. Todos os literatos - romancistas,poetas ou historiadores - abordam a Revolução Farroupilha porque ela é um selo de identidade do Rio Grande do Sul.
ZH - Foi essa a razão de o senhor tê-la escolhido como objeto de pesquisa em seu mestrado?
Flores - Inicialmente, pensei em estudar Carlota Joaquina. Fomos até Petrópolils (RJ) para ver o Arquivo do Museu Imperial. Me apavorei com a quantidade de documentos. Ela queria ser soberana do Prata e manteve correspondência com ministros de Grã-Bretanha, Espanha,Argentina,Uruguai,Peru.Quando comecei a ler, fiquei estarrecido e cheguei à conclusão de que não teria dinheiro nem tempo para fazer essa pesquisa. Se ganhasse bolsa, teria de parar de lecionar, e então tinha de continuar lecionando e fazendo a dissertação. A PUCRS me deu uma vantagem: diminuiu a carga horária sem redução de salário. Fiquei com uma tarde para o Arquivo Histórico.
ZH - Só uma tarde?
Flores - E tinha as férias.Viajávamos para Pelotas e Rio Grande - esta última é uma das melhores que temos. Pesquisei no Arquivo Municipal de São Paulo e ao Rio, no Arquivo Nacional. Fiz o trabalho nas férias junto com a família. Enquanto Hilda ficava cuidando das crianças,eu ficava caneteando e pesquisando.
ZH - Por que o senhor decidiu pesquisar a política dos farroupilhas?
Flores - Eu estava lendo um jornal antigo do tempo dos farrapos e vi a palavra "política". Pensei: opa, ninguém escreveu sobre política. Como professor, sempre fiz levantamento de bibliografia e me dei conta de que, entre as 400 publicações que tinha listado, não havia nada sobre política. Então decidi estudar as ideias políticas. Aliás, o título da
dissertação, de 1975, é Ideias Políticas na Revolução Farroupilha. Quando o livro foi publicado, em 1978, escolhi o título Modelo Político dos Farrapos. Era a época dos Anos de Chumbo, só se falava em modelo econômico, modelo político, modelo social.
ZH - Modelo Político dos Farrapos foi uma tentativa de estudar a história dos
Farrapos para além da economia?
Flores - Não, não pensei nisso. Pensei que tinha de fazer rapidamente uma dissertação e procurei um tema sobre o qual ninguém tinha escrito. Todos falavam que o movimento
dos farrapos era democrático. Não era democrático, era liberal. Só um, Joaquim Francisco de Assis Brasil, que escreveu um livro sobre a Revolução Farroupilha em 1883 (História da República Rio-grandense), diz isso, mas não explica. Comecei a estudar o liberalismo, a documentação. Dante sempre me disse: "O movimento farroupilha é brasileiro". De fato, é brasileiro. Para mim, o maior acontecimento da história do Brasil é a Revolução Farroupilha, tentativa de implantar uma república
brasileira. Só que as outras províncias não o acompanharam, e o pessoal ficou sozinho. Esse movimento começa em 1823,quando Dom Pedro I fecha a Assembleia Constituinte. Eles se consideram herdeiros dos liberais de 1823, queriam um Legislativo forte que evitasse a ditadura do Executivo. Diziam que um Legislativo
fraco propicia o autoritarismo.
ZH - E queriam chegar a isso sem romper a unidade do país?
Flores - Pretendiam uma federação de províncias autônomas. Não era a separação. É claro que, quando viram que os outros não tinham acompanhado, só restava proclamar
a república para continuar a luta. Havia um grupo pequeno, chamado de farroupilha, que queria a separação desde o início. No projeto de Constituição de 1842, em Alegrete, aparece a ideia de que as províncias se federalizem ao Rio Grande. Para eles, a federação permitiria que os Estados tivessem leis próprias. Eles estudam num jornalzinho americano as Constituições dos Estados americanos.Não a Constituição
Federal,as Constituições dos Estados.
ZH - Estão interessados na relação com o poder central.
Flores - Era isso que queriam implantar. Seríamos uma federação autônoma. O Brasil
continua sendo federação no nome. Não é federação porque tudo se decide em Brasília, como antes se decidia no Rio. Para calçar uma rua em Porto Alegre,os vereadores precisavam pedir licença para o presidente da província, que pedia licença ao ministro do Interior no Rio. Concedida a licença, a Câmara Municipal obrigava os moradores da rua a pagar o calçamento. Em 1884, Capistrano de Abreu escreve que "o governo brasileiro castrou e recastrou o povo brasileiro". Carlos von Koseritz viaja em 1883 ao Rio, visita o Congresso e diz: "É um circo de cavalinhos com lonas rotas onde os
políticos fazem malabarismos que ninguém mais aplaude, fazem palhaçadas de que ninguém mais ri".O povo sempre foi desamparado, e aliás continua desamparado.
ZH - A proclamação da República foi um gesto impulsivo a partir da vitória na
Batalha do Seival?
Flores - Não é só isso. Havia uma cisão entre Antonio de Souza Neto e João Manoel de Lima e Silva, tio do futuro Duque de Caxias e irmão do regente Lima e Silva e do ministro da Guerra,Manoel de Lima e Silva.É por isso que eles fazem a sedição. Eles têm toda a proteção. Tanto é que o Rio não mandou soldados para contra-atacar. Quem contra-atacou os farroupilhas foram os rio-grandenses.Aí assumiu a Regência o padre Diogo Antônio Feijó, chefe do partido farroupilha em São Paulo.
ZH - Eram chamados de farroupilhas em São Paulo também?
Flores - O partido farroupilha já existe em 1828 no Rio e em São Paulo. Farroupilha designa os que querem a federação. O Brasil era um Estado unitário, e "farroupilha" quer dizer pedaço, retalho, no sentido de que são pedaços no sistema político brasileiro de Estado centralizado. São subversivos que querem a federação. Depois os nosso historiadores mudaram o negócio, sugerindo que "farroupilha" significava esfarrapado, ou seja, que o povo havia se levantado.O povo não se levantou.Foram os estancieiros que levaram seus parentes, seus compadres.Vai todo mundo para a guerra,
afilhado,tudo.É um sistema de compadrio: o compadre vai para a guerra, e os afilhados têm de ir junto. Essas ideias que estudei (em Modelo Político dos Farrapos) não eram do povo. O povo era analfabeto - 85% dos rio-grandenses não sabiam ler nem escrever.
ZH - Passados 35 anos da publicação de seu livro,como define Bento Gonçalves?
Flores - A definição que temos segue a de Thomas Carlyle (historiador britânico): ele
parte do princípio de que a história se faz por heróis e que esses heróis já nascem predestinados. Os republicanos precisavam de heróis para nossa República. Ela é instaurada por um golpe militar para impedir que, na sessão legislativa de 20 de novembro, Joaquim Nabuco apresentasse um projeto da princesa Isabel para compra de terras aos escravos libertos, e voto feminino. A princesa escreve: "Se os
republicanos e militares consentirem". Não consentiram. Cinco dias antes, dão um golpe sem a participação do povo e proclamam a república. Tentaram fazer Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto (os dois primeiros presidentes da República) de heróis, não conseguiram. Pensaram: quem lutou contra o Império? Um tal de Tiradentes, e então Tiradentes foi transformado em herói porque lutou contra a Coroa portuguesa. E no Rio Grande? Bento, Davi Canabarro. Pronto, foram transformados em
heróis dos positivistas que assumiram o poder. Todo mito é criado de acordo com os interesses de cada geração. Como não tenho esses
interesses, vejo Bento Gonçalves lembrando que esses personagens históricos são humanos, com todas as falhas humanas. "Os farroupilhas pretendiam
uma federação de províncias autônomas. Não a separação. Quando viram que os outros não tinham acompanhado, só restava proclamar a república para continuar a luta.