A primeira versão para o cinema da vida do pintor lombardo Caravaggio (1571 - 1610), realizada em 1941 por Goffredo Alessandrini, denunciava as intenções do diretor logo no título: Caravaggio, il Pittore Maledetto (Caravaggio, o Pintor Maldito). Duas versões seriam ainda feitas (uma em 1967, por Silverio Blasi, e outra em 1986, pelo inglês Derek Jarman) antes que as contradições e ambivalência do pintor barroco fossem tratadas de forma menos estereotipada na minissérie Caravaggio, produção da RAI (2007) dirigida por Angelo Longoni, que a Versátil lança em DVD.
Sem a obsessão formalista de Jarman - que, ainda assim, fez um belo filme cheio de anacronismos e com um ator excepcional (Nigel Terry) -, o realizador Longoni preferiu ser mais convencional e explorar o conflito contínuo entre luz e sombra na obra de Caravaggio - reforçando a representação metafórica da salvação e danação. Afinal, justifica Longoni, 'Foi um pintor que ousou retratar santos e mártires com marcas terrenas, contestando as regras rígidas da Contrarreforma para representar a espiritualidade".
Para dar forma a esse confronto entre luz e sombra, Longoni chamou o veterano diretor de fotografia Vittorio Storaro (Apocalypse Now), que justamente decidiu se tornar fotógrafo de cinema, nos anos 1960, após descobrir, aos 20 anos, uma pintura que mudou sua vida, na Capela Contarelli (no interior da Igreja São Luís dos Franceses, em Roma). Era A Vocação de São Mateus (1599 - 1660), óleo com mais de 3 metros de altura por outro tanto de largura, que retrata uma passagem do Evangelho de Mateus. Nela, Cristo vê um homem (Mateus) sentado na coletoria e pede que o siga (é o único que o enxerga, enquanto os demais personagens continuam contando dinheiro).
Storaro ficou tão tocado pela pintura que a usa para emocionar também o espectador da minissérie na sequência mais elaborada de Caravaggio. Nela, o assombroso efeito de luz de A Vocação de São Mateus - um raio transcendental que vem da direita e incide sobre o santo - é sugerido pelo sol da manhã que desperta Caravaggio, doente e cansado. Esse raio de luz que entra pela janela, cortando a tela na transversal, corresponde simbolicamente a uma manifestação teofânica, segundo a concepção do pintor. Storaro reforça a descoberta em outras sequências que tentam reconstituir a origem de conhecidas pinturas do artista, entre elas Judite e Holofernes, tela igualmente de inspiração bíblica realizada no mesmo ano (1599) - e que retrata a decapitação do general assírio, embriagado e morto pela bela viúva judia para salvar seu povo.
A tentação de representar a cena como um fotograma é forte. Justificável: Caravaggio, ainda segundo Storaro, três vezes ganhador do Oscar de fotografia, foi cineasta antes mesmo de o cinema ter sido inventado, respondendo pela composição das cenas, a posição das figuras, os figurinos e, especialmente, o desenho da iluminação, feita com luz natural (como em A Vocação de São Mateus) e artificial (O Martírio de São Mateus, por meio de tochas).
Coube ao diretor Longoni deixar Storaro livre para explorar a passagem da luz natural para a artificial nessas duas telas que se completam. No entanto, para evitar comparações com a cinebiografia realizada por Derek Jarman - que leva ao paroxismo essa reconstrução formal -, o realizador italiano preferiu ser menos ousado e seguir as regras do melodrama, localizando Caravaggio em sua época, marcada pelo cinismo dos nobres e o absolutismo do poder eclesiástico. Longoni mostra o pintor como um inimigo da Inquisição, defensor de ideias progressistas e um homem detestado por seu espírito inovador, mas visto com desconfiança por ser protegido de cardeais e andar pelas ruas sempre seguido de capangas, pronto a usar sua espada.
Sem exatamente recusar o mito do "pintor assassino" consagrado pelo romantismo, Longoni tenta equilibrar sua cinebiografia entre a interpretação pessoal e os estudos de sua vida por acadêmicos - notadamente Roberto Longhi, responsável pela monografia mais respeitada sobre o artista, escrita em 1968 e publicada, aqui, pela Cosac Naify. Embora evite o estereótipo que a literatura artística solidificou, o diretor esbarra na simplificação da personalidade de um homem obcecado pela refiguração, pela reprodução mimética da realidade, a ponto de usar mendigos, prostitutas e marginais como modelos de santos.
Longoni faz do bissexual Caravaggio um garanhão, que rouba uma prostituta de um outro tipo de proscrito, o rufião Ranuccio Tomassoni, assassinado pela espada de Caravaggio em 1606. Na versão de Jarman, os três se tornam amantes e o ciúme corrói a relação, culminando em tragédia. Na minissérie italiana, o pintor mata Ranuccio por maus-tratos à amante dos dois, Fillide Melandroni. Segundo a versão oficial mais recente, o crime não aconteceu numa partida de tênis - apenas pretexto para um duelo. Caravaggio castrou seu adversário para defender a honra de Fillide, num arroubo de fúria heterossexual.
Seja como for, o diretor contou com o ator Alessio Boni na defesa do rebelde inconformista que mudou a história da pintura com sua habilidade em reproduzir o real. E, além de tudo, sua semelhança física com Caravaggio impressiona.