Professor e ex-reitor da UFRGS, Hélgio Trindade é reitor da Universidade da Integração Latino-Americana (Unila) em Foz do Iguaçu. Seu livro Poder Legislativo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul (1891 - 1937) foi publicado em 1980 pela Sulina. O livro está esgotado.
Zero Hora - Onde o senhor nasceu e cresceu? Quem eram seus pais? Como foi sua educação?
Hélgio Trindade - Nasci em 14 de junho de 1939 em Encruzilhada do Sul. Embora minha família fosse de Porto Alegre, meu pai, Otto Belgio Trindade, foi designado juiz municipal nessa cidade, onde vivi meus dois primeiros anos de vida. Posteriormente, ele foi convidado para organizar o recém-criado município de Flores da Cunha (antiga Nova Trento) como prefeito nomeado pelo governo do Estado. Sou o mais velho de cinco irmãos, num total de três homens e duas mulheres. Minha memória sobre Encruzilhada é muito vaga, mas em Flores da Cunha tive uma grande vivência. À época, o único automóvel da cidade era um táxi. Havia, sim, carroças de colonos de origem italiana que transportavam barris de vinho. Tive a liberdade de me criar num espaço totalmente livre. Meu pátio era a praça da cidade. Havia somente uma rua, a principal. Às vezes digo aos amigos que não precisei de psicanalista porque minha meninice foi a mais livre possível e não sofri nenhuma repressão. (Risos.) Quando meu pai voltou para Porto Alegre, fui matriculado no Grupo Escolar Uruguai, num casarão na Rua Miguel Tostes (então Rua Esperança), e lá fiz os primeiros anos do Curso Primário. Era um grupo escolar uruguaio, onde se aprendia o hino do país e canções em guarani, e foi, portanto, uma experiência igualmente interessante. Tive colegas que se tornaram jogadores de futebol e até ladrões. Aquela interculturalidade me deu uma visão democrática da sociedade que a escola privada, muitas vezes, não permite. Cursei o quarto e o quinto anos do Primário no Instituto de Educação General Flores da Cunha, onde minha mãe, Hebe Casses Trindade, era professora. Somente na época do Curso de Admissão para ingressar no Ginásio é que fui para o velho Colégio Anchieta da Rua Duque de Caxias. Era um colégio tradicional, jesuíta, e aí concluí o Ginásio e o Curso Clássico, que equivale ao atual Ensino Médio. No Anchieta não havia grêmio estudantil - os jesuítas não aceitavam política estudantil em seus colégios. Assim, tornei-me presidente do grêmio literário. Somente mais tarde, na universidade, envolvi-me com política estudantil.
ZH - De onde vem seu nome? Há relação com o segundo nome de seu pai, Belgio?
Trindade - É uma curiosidade. Meu avô materno, Átila Guterres Casses, era um rábula, ou seja, alguém que praticava o direito sem ter feito faculdade. Nasceu em Alegrete e se tornou promotor, tendo atuado muito em São Borja e em Quaraí. Minha avó era Hermelina Casses, tinha um tipo físico de índia, com tez morena, era muito bonita. Meu avô tinha origem espanhola, era claro de olhos azuis e, além do direito, se dedicou à poesia. Decidiu chamar os filhos com nomes de deuses da mitologia: minha mãe chamava-se Hebe, um tio, que foi professor de história no Rio, era Odin. Meu nome, Hélgio, é a combinação de Hebe, minha mãe, com Belgio, meu pai.
ZH - Sua opção pelas humanidades foi feita no Ginásio?
Trindade - De um lado havia o fato de meu pai ser advogado, com muitos livros, o que constituía um estímulo natural. Meu pai foi tabelião, tinha o 5º Cartório de Notas, o Cartório Trindade, e tentou me seduzir para não apenas fazer Direito como para trabalhar no cartório a fim de obter um pouco de prática. Consegui ficar duas tardes lá e disse a ele que não tinha o menor interesse naquilo. Direito era o curso que abria mais opções (o nome do curso era Ciências Jurídicas e Sociais), estudavam-se algumas coisas que têm a ver com minha área atual, a ciência política. Travava-se contato com direito constitucional, teoria geral do Estado, direito público. Era isso que me interessava. Mas minha passagem pela universidade foi de uma militância muito ativa na política estudantil. Juntamente com Francisco Ferraz (líder estudantil e posteriormente reitor da UFRGS), fui dirigente da União Estadual de Estudantes. Vencemos uma eleição na qual enfrentamos, como independentes, uma chapa apoiada pelos dirigentes estudantis da PUCRS, ligados ao PTB, ao PL e à democracia cristã, e da UFRGS, vinculados ao Partido Comunista Brasileiro.
ZH - Como vocês se situavam em termos políticos?
Trindade - Nosso slogan tinha um neologismo: "Politização e descupulização". Acabo de escrever um artigo sobre movimento estudantil e Legalidade. Nesse trabalho, mostro que o movimento dos estudantes, ou seja, a União Nacional dos Estudantes (UNE), recebeu o impulso de nacionalização durante a Legalidade. Fizemos uma campanha pela base, indo aos municípios. Mas tínhamos uma posição de esquerda porque tínhamos visitado Cuba em 1961, como parte de uma delegação brasileira convidada para as comemorações do terceiro aniversário da Revolução Cubana.
ZH - O senhor recebeu convite individual?
Trindade - A viagem tinha sido organizada pelo governo cubano. Voamos a bordo de um daqueles aviões Britannia que eles tinham. Havia três grupos na delegação: o do Instituto de Amizade Brasil-Cuba, ligado ao PCB, o de representantes do próprio partido e o dos convidados da embaixada. Havia um deputado federal que chegou a ser prefeito de Brasília, Paulo de Tarso, e que havia acompanhado o então candidato à Presidência Jânio Quadros a Cuba. Esse parlamentar voltou entusiasmado e se tornou um divulgador da Revolução Cubana, tentando provar que era compatível com uma visão cristã da sociedade. Era democrata-cristão, mas participou da Frente Parlamentar Nacionalista. Quando Fidel Castro se declarou marxista-leninista, ele se afastou, mas, como tinha sido convidado para a viagem, ligou para minha casa (eu o havia conhecido numa conferência em Porto Alegre) e sugeriu que fosse em seu lugar. Passei a noite em claro, imagina. (Risos.)
ZH - O senhor tinha pouco mais de 20 anos.
Trindade - É. Convidei um colega, e ficamos um mês lá. Visitamos Havana e Santiago de Cuba, tivemos entrevista com Fidel e encontrei Ernesto Che Guevara em duas oportunidades, uma delas no hotel em que estávamos hospedados e outra na cerimônia de aniversário da Revolução. Nessa recepção no hotel ele estava de smoking, ao lado do núncio apostólico (representante diplomático do Vaticano), com a maior naturalidade. Nessa época, o cardeal arcebispo do Rio, dom Jaime Câmara, dizia que onde o vice-presidente João Goulart pusesse o pé, ele, dom Jaime, não poria o seu porque era um comunista. Foi uma experiência marcante. Quando voltamos, demos uma entrevista à Folha da Tarde na qual tentamos ser objetivos em relação aos benefícios que a Revolução Cubana tinha oferecido a distintos segmentos da população: alfabetização, reformas agrária e urbana etc. Não era um negócio ideológico, mas uma demonstração de que, numa sociedade extremamente excludente e ditatorial, havia benefícios.
ZH - Como o golpe militar de 1964 repercutiu sobre a sua trajetória?
Trindade - Depois de nossa eleição para a diretoria da UEE, surgiu um grupo chamado Ação Popular (AP), ao qual nos somamos. Havia uma certa atração genérica pela esquerda, partindo do pressuposto de que a Revolução Cubana não tinha sido feita por um bloco ideológico único e que os comunistas só se somaram ao movimento contra a ditadura de Fulgencio Batista nos momentos finais. A AP surgiu de um manifesto lançado por um dirigente estudantil da PUC do Rio chamado Aldo Arantes (mais tarde dirigente e parlamentar do PC do B, no qual ingressaria com uma parte da AP). Ernildo Stein (depois professor de filosofia da PUCRS), Francisco Ferraz e eu fomos dirigentes da AP. Quem nos ajudou muito, do ponto de vista teórico, foi Ernani Maria Fiori (professor de filosofia da UFRGS cassado após 1964). Os cursos de filosofia de Fiori e de Gerd Bornheim (também docente de filosofia da UFRGS cassado após o golpe) e de ciência política de Leônidas Xausa me influenciaram muito. Pouco a pouco, me afastei da filosofia e me encaminhei para a política. O golpe cortou e castrou tudo isso. A partir daí, como diria Bourdieu (o sociólogo francês Pierre Bourdieu), só tínhamos como opção nos reconverter à carreira para continuar a luta política de outra forma. Xausa nos orientou a seguir para o Exterior: fui para a França, Ferraz seguiu para Princeton (universidade americana).
ZH - O contexto da ditadura militar foi determinante em seu interesse pela questão parlamentar no regime castilhista?
Trindade - No governo John Kennedy (1961 - 1963), a Fundação Ford assumiu uma orientação mais liberal e passou a apoiar, na América Latina, estudiosos de esquerda perseguidos por regimes autoritários nas áreas de ciência política e antropologia social. Em 1965, apoiaram a criação do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, o primeiro do Brasil, e, em 1969, sustentaram o Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), nas Faculdades Cândido Mendes. Também houve apoio à UFRGS, embora não de forma tão ampla. Isso nos permitiu fazer, com toda liberdade, em plena ditadura, pesquisas sobre eleições no Rio Grande do Sul. Essa pesquisa teve, no início, um caráter arqueológico. Pouco a pouco, reconstituímos os dados eleitorais do Estado de 1945 a 1966. De repente, o que parecia uma coisa morta renasce das cinzas em 1974, quando a oposição vence as eleições para o Senado em 16 Estados.
ZH - Qual é a relação entre Poder Legislativo e Autoritarismo e seu contexto?
Trindade - A tradição da história, na UFRGS, era preponderantemente econômica. Não tinha se constituído história política. Esse espaço vazio acabou sendo ocupado por um conjunto de pesquisadores, como Helga Piccolo, Maria Izabel Noll, Celi Pinto e eu, entre outros. Começamos a nos dar conta de que havia coisas na história do Rio Grande do Sul que não tinham sido consideradas. Me dei conta, a partir do que tinha estudado na França, de que o parlamento tinha importância desde que não virasse mera caixa de ressonância do Executivo. A primeira fissura que se viu na ditadura foi que, no parlamento do Rio Grande do Sul, era possível cumprir esse papel em razão de nossa tradição política. Com apoio da Assembleia Legislativa, decidimos fazer uma pesquisa inédita e extremamente trabalhosa: ler os anais do parlamento do início da República até a década de 1930. Descobrimos que, no contexto de um Estado positivista no qual a Assembleia se reunia por três meses, apenas para aprovar o orçamento, começa a crescer o número de representantes do Partido Federalista, de oposição.
ZH - A oposição elege o primeiro deputado em 1913.
Trindade - Sim, mas a partir daí começa a aumentar para dois, três, quatro. E essa oposição começa a pedir ao presidente do Estado informações sobre rubricas concretas do orçamento. Aquilo deixa de ser um ato ratificativo e passa a servir para questionar o orçamento. E mesmo que essa minoria não tivesse poder para mudar o resultado, porque era uma minoria, podia questionar e exigir que o Executivo desse respostas que saíam na imprensa. Assim, surge o líder da maioria que vai enfrentar essa minoria consolidada como grupo. Espontaneamente, pela dinâmica política do parlamento, começam a surgir os mecanismos de um processo legislativo real. Isso desemboca na eleição fraudada de 1922, na qual o candidato de oposição, Joaquim de Assis Brasil, é derrotado, o que desencadeia a Revolução de 1923. Na Revolução de 1930, o Rio Grande do Sul, que não tinha a tradição de parlamento democrático de outros Estados, naturalmente passa de uma etapa de mera aprovação do orçamento para a de um legislativo propriamente dito. A maturação se deu pela prática e pela dinâmica política.
ZH - O que é especificamente rio-grandense nesse fenômeno?
Trindade - O Rio Grande é um exemplo de como se passa do conflito armado e da não aceitação da hegemonia dos republicanos para a consolidação de uma classe dirigente republicana. Quando é proclamada a República, a hegemonia no Estado era dos liberais. Gaspar Silveira Martins estava a caminho do Rio para assumir o gabinete. Os republicanos não tinham força para assumir o poder. Ocorre então a sucessão de 11 governos em quatro anos e a Revolução de 1893, na qual os blancos uruguaios apoiam a oposição armada federalista. Julio de Castilhos só se firma quando Floriano Peixoto assume a Presidência da República. O primeiro instrumento da consolidação republicana é o Partido Republicano Rio-grandense. Em todo o país, os republicanos se tornam hegemônicos após a queda do Império. Aqui, há dois partidos, o Republicano e o Federalista. O PRR passa a designar líderes de outras regiões para o interior do Estado. Ao chegar a essas localidades, esses líderes começam a batizar ruas com os nomes de seus próceres (Julio de Castilhos, Borges de Medeiros) e a ocupar o espaço das antigas agremiações. O PRR é criado a partir do Estado, não da sociedade. O segundo é a passagem da luta armada para o conflito político. Tivemos 1893 e 1923 como tentativa de resolver o problema pela violência.A partir do momento em que Assis Brasil se apresenta como candidato e se impõe como alternativa política que não pode ser destruída militarmente, o inimigo se torna adversário. A própria sociedade está transitando do conflito armado para o político.