Zero Hora - Onde a senhora nasceu e cresceu? Quem eram seus pais?
Helga Piccolo - Nasci em 1932, em Porto Alegre. Meu pai, Ricardo Landgraf, nasceu em 1898 em Erfurt, na Turíngia, região central da Alemanha. Ele era linotipista, lutou na I Guerra Mundial. Depois da guerra, meus pais tiveram vínculos com a Liga Espartaquista, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, mas se desencantaram com as propostas deles. A situação econômica e social na Alemanha era péssima, e eles resolveram emigrar. Sabiam que havia muitos alemães no Brasil, embora não tivessem nenhum parente aqui, e decidiram vir para cá. Minha mãe se chamava Frida e era dona de casa. Aqui, havia uma imprensa ligada aos imigrantes alemães, e meu pai encontrou trabalho imediatamente. Acabou se dedicando ao comércio, foi representante de grandes empresas alemãs, como a Bosch. Fez-se na vida e nos deixou muito bem, obrigada. Tiveram dois filhos. Meu irmão, Mário Siegfried, nasceu em 1926 e é engenheiro. Meu pai aprendeu português em um curso na Associação Cristã de Moços (ACM). Leu muita literatura brasileira. Tanto é que meu nome sempre foi motivo de gozação na universidade: Helga Iracema. Meu pai adorou a obra de José de Alencar (o romance Iracema).
ZH - Seus pais gostavam do Brasil?
Helga - Muito, nunca pensaram em voltar para a Alemanha.
ZH - Como eles viam a Alemanha depois da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933?
Helga - Eu era muito criança. Sei que não houve em casa nenhuma discussão a respeito do nazismo. Mas, como se falava alemão em casa, houve um problema muito sério. Meu pai vivia com a mala pronta para ser preso. Mas nunca o foi, e, quando terminou a II Guerra Mundial, obteve cidadania brasileira. Minha mãe não pediu cidadania, não se interessava.
ZH - Sua educação foi em colégios de tradição alemã?
Helga - Sim, meu irmão e eu somos farroupilhanos (egressos do Colégio Farroupilha). Como o Farroupilha não tinha os cursos Científico e Clássico (equivalentes ao atual Ensino Médio), fomos para o Colégio Júlio de Castilhos. Lá cursei o Científico, e ao terminá-lo fui para a Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) cursar Geografia e História, que naquela época era um curso só. Ingressei em 1950 e me formei em 1952.
ZH - Fale um pouco do ambiente que encontrou na universidade.
Helga - Não tínhamos professores formados em História. Nossos primeiros professores foram todos do Direito: Dante de Laytano, Francisco Carrion. Não estavam preocupados com teoria, e sim em botar conteúdos em nossa cabeça. Sempre achei isso muito bom, porque aprendi muito com eles. O doutor Dante foi meu guia, me levou para o magistério ao me convidar para lecionar junto com ele. Ingressei como professora na faculdade em 1959, depois de fazer uma prova e ser aprovada. O doutor Dante queria alguém da área dele, história do Brasil, a minha preferida. Depois, ele dividiu a área e criou a disciplina de História do Rio Grande do Sul, à qual me dediquei no início da carreira. Em 1969, recebi um convite do então diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Eurípedes Simões de Paula. Ele disse: "Helga, vem de uma vez, você não precisa fazer exame de admissão para doutorado pelo teu currículo".
ZH - Antes de ingressar como professora na UFRGS, onde a senhora deu aulas?
Helga - Lecionei no Colégio Americano e na Fundação Evangélica, em Novo Hamburgo. Na Fundação, eles queriam um professor que falasse alemão e fosse protestante. O Americano também fazia questão de um professor que não fosse católico, porque se trata de um colégio metodista. Sou evangélica de confissão luterana, e foi tranquilo. Não fiquei muito tempo no Americano porque casei em 1956 e, em seguida, tive o meu primeiro filho. Logo larguei o ensino secundário e fiquei só na universidade.
ZH - Como foi o processo de consolidação da cadeira de História do Rio Grande do Sul?
Helga - A história do Rio Grande do Sul não era tratada na produção historiográfica brasileira. A única referência que se encontrava nos livros era à Guerra dos Farrapos, em menções rápidas. Fiz minha tese de doutorado sobre a história do Rio
Grande do Sul por essa razão. É um absurdo: até hoje, a história do Brasil é a história de São Paulo, do Rio e de Minas Gerais. Os nordestinos diziam a mesma coisa na época: o Nordeste está fora. Por isso, apoiamos muito o projeto do doutor Dante. Hoje, a cadeira de História do Rio Grande do Sul é ministrada em dois semestres. A grande maioria das dissertações de mestrado e teses de doutorado é sobre o Rio Grande do Sul. Isso nos abriu a possibilidade não apenas de estudar como de tornar a história do Rio Grande conhecida. Depois da UFRGS, a História do Rio Grande do Sul foi implantada na PUCRS e na Unisinos - nessa última, lecionei por 25 anos. Temos muita documentação em arquivos. Não apenas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, mas também no Arquivo Eclesiástico. Podem nos chamar de regionalistas, mas os paulistas também o são. Por que não podemos ser regionalistas?
ZH - Como foi o seu percurso no doutorado?
Helga - Não me entrava na cabeça que a história do Rio Grande fosse tão pouco conhecida no resto do Brasil. Sempre gostei de história política, não me pergunte por quê. Deixo a história econômica e social para os outros, eu gosto de história política. No momento de apresentar o projeto à USP, percebi que se conhecia alguma coisa sobre a Guerra dos Farrapos, mas disso se pulava para a proclamação da República. E o resto? O que tem ali no meio? Pensei: esse vai ser o meu caminho. E, quando comecei a pesquisar, fiquei meio perdida com tanta informação interessante e importante que havia.
ZH - Onde a senhora foi pesquisar?
Helga - Principalmente no Arquivo Nacional, no Rio. Parece mentira, mas a boa documentação sobre esse período está lá. Durante o Império, o sistema político era centralizado. Tudo que as autoridades faziam era transmitido para o Rio. Há muito
boa documentação no Arquivo Histórico daqui, que, aliás, está bem organizado, e há também o Arquivo da Cúria Metropolitana, onde eu pouco trabalhei porque não entro na área religiosa. Também pesquisei muito na Biblioteca de Rio Grande, onde há basicamente jornais e literatura. Foram quatro anos de pesquisa. Em 1972, defendi minha tese. Só tem uma coisa: fui a primeira doutora em História do Estado, mas naquela época não existia bolsa de estudos. Saiu tudo do meu bolso.
ZH - A senhora se licenciou da UFRGS durante o doutorado?
Helga - Não, senhor. Continuei dando aula. Pesquisava quando não tinha aula.Viajava uma vez por mês.
ZH - Seus filhos ficavam por aqui?
Helga - E para que existe avó? (risos). Minha mãe criou meus dois filhos. Ela morava na casa ao lado. Tinha paixão pelos netos. Os dois se agarravam nela.Foi muito difícil fazer o doutorado.Além das aulas, todos os meses eu tinha de me apresentar ao orientador para mostrar a ele o que estava fazendo. Eu também ia muito a congressos, e ainda vou, embora esteja aposentada. No mês passado, fui a um congresso na Áustria. É nos congressos que a gente aprende, porque a gente vê o que está sendo feito em outras áreas.
ZH - A política rio-grandense no Segundo Império foi o tema de sua dissertação, mas a pesquisa resultou em mais de um livro. Por quê?
Helga - Minha tese foi publicada em livro, A Política do Rio Grande do Sul. O doutor Dante não sossegou enquanto não publicou a primeira tese de doutorado sobre a história do Rio Grande do Sul. Mas me dei conta de que a minha tese tinha muito furo
porque muita coisa ficou em aberto. Devo ter 10 livros sobre a história política do Império. Me dei conta de que, para fazer história política, eu tinha de ler os discursos pronunciados na Assembleia Legislativa. A partir disso, organizei dois volumes, e a Assembleia Legislativa decidiu publicá-los. Depois do doutorado, conheci as filhas de Joaquim Francisco de Assis Brasil (político e diplomata republicano gaúcho), de quem me tornei amiga. Fui uma das organizadoras do arquivo de Assis Brasil, juntamente com o professor Hélgio Trindade.
ZH - Quais foram as mudanças em sua forma de pensar o sistema político gaúcho entre a defesa da tese de doutorado e a publicação de Política Rio-grandense no Segundo Império?
Helga - Passei a me aprofundar nos partidos políticos, nas eleições. Esse sistema eleitoral e partidário acabou sendo a minha grande preocupação depois. Acabei tendo que entrar na Guerra dos Farrapos, não escapei disso. A Guerra dos Farrapos mostrou que havia o que chamo de projeto alternativo de organização do Estado nacional brasileiro. Era alternativo porque não era aquele que está na Constituição brasileira de 1824. Elabora-se um projeto alternativo e proclama-se a república, ou seja, o
negócio é sério. Assis Brasil tem um livro sobre a Guerra dos Farrapos que, infelizmente, é pouco usado. Não concordo com muitas coisas que ele escreve, mas ele fez o livro quando era estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, e eu estou escrevendo cem anos depois. Eu adorava ir para o Castelo de Pedras Altas (antiga residência da família Assis Brasil). Meu quarto era o da parede azul, onde havia dormido Luiz Carlos Prestes quando foi conspirar com Assis Brasil para dar início à marcha da Coluna.
ZH - Dessa forma, a senhora acabou recuando até antes de 1840.
Helga - Meus interesses englobam o processo de independência no Rio Grande do Sul e a Guerra dos Farrapos. Esses temas tornaram-se filhos diletos da minha produção. Nos últimos tempos, quando outros pesquisadores se interessaram pelo tema,
me voltei para a imigração alemã.Isso me interessava por causa das minhas origens. Vou todos os anos à Alemanha. Me apaixonei pelos problemas relacionados à imigração alemã, mas me mantive no século 19, sempre antes da República. Deixo a República para os outros. (risos.) Acho muito bom termos diversos núcleos de pesquisa nas universidades. Aparecem trabalhos maravilhosos. Fui a criadora das cadeiras de História do Brasil e do Rio Grande na Unisinos. Meus ex-alunos são os professores de hoje lá. Me orgulho disso.Alguma coisa eu consegui fazer brotar. Sou a primeira doutora em história do Rio Grande do Sul, professora emérita da UFRGS e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).Alguma coisa eu plantei.