Reportagem publicada originalmente em dezembro de 2011 no caderno Cultura de ZH
Do jardim da infância ao ginásio convivi todos os dias com um Getúlio Vargas alto, um monumento de 150 quilos de mármore, mirando a igreja do cônego Wiro, personagem com um sotaque daqueles próprios dos sacerdotes. De costas na ida e de frente na volta, Getúlio me esperava sobre o pedestal com a carta-testamento.Menos aos sábados nos víamos, dia de fazer nada em São Borja. Nos dias úteis, no percurso diagonal até o colégio das freiras Sagrado Coração de Jesus, na esquina da Praça XV de Novembro, deixava de me preocupar com sabatinas, amores platônicos e bullying (update de gozação dos colegas, no caso, pelos cambitos que me acompanham até hoje) para erguer o nariz. Eu checava o desrespeito das pombas com o tampo da cabeça do presidente e, confesso, tinha medo de ser a próxima vítima. A praça era limpa - mas nunca gostei da parte da manutenção com as pinturas de cal a emoldurarem os passeios -, e o paisagismo exibia a mesma espécie de árvores que demarcava a perder de vista a minha rua,uma depois da Avenida Getúlio Vargas. Poucas espécies sobressaíam, como o flamboyant no lado oposto ao da igreja e da prefeitura, para mim o mais importante, o da loja dos meus avós, um sobrado art déco com um pavimento desocupado que os pombos do Getúlio descobriram, furaram os vidros e se tornaram inquilinos vândalos.
Eis que décadas de distância se interpuseram entre eu e aquele Getúlio que no domingo era o único a me esperar na saída da missa.Voltei para casa na segunda metadedos anos 2000 por força da morte de uma tia-avó que terminou a vida no primeiroedifício da cidade,agora de frente para o novo recanto do presidente são-borjense. Percorri a Praça XV meio anestesiada pelo cansaço, a tristeza e a emoção.Não reconheci as árvores, revoltas e crescidas sem controle, nem de longe parecidas com os canteiros à moda europeia da minha memória. Cadê o Getúlio? Na idade madura, sem a saia azulmarinho pregueada, encurtada por força de dobras rudimentares, antes que a estátua piscasse e longe das irmãs de hábito preto - ou cinza, conforme a estação, descubro no centro do traçado da praça um Oscar Niemeyer. Onde gastei muitos sapatos e poucas congas há agora uma peça de concreto, tal como uma obra do arquiteto deve ser.Tenho que admitir ser a maior homenagem ao presidente de bronze.
Desde os 50 anos da morte do presidente, em 24 de agosto de 2004, a representação figurativa de Getúlio Dornelles Vargas recuou metros do local original habitado desde 1959 e desceu do pedestal para ceder espaço à homenagem abstrata. Com a forma curva do concreto rasgada por um filete de sangue e a placa com a carta-testamento aplicada, a escultura de Niemeyer assume o centro, sobre os restos mortais do presidente.São Borja inteira chama a obra escultórica de mausoléu. Sinto arrepios com essa palavra. Prefiro memorial, mais delicado e igualmente respeitoso, com um sentido de homenagem. Espero que em breve saia a obra do espelho dágua no entorno do projeto de Niemeyer - com ou sem tantos chafarizes - e chamem do nome que quiserem,tal como eu.
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Eleone Prestes
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