Obra de referência da literatura moderna, o monumental romance Ulisses, de James Joyce (1882 - 1941), publicado em 1922, termina com um solilóquio da personagem Molly Bloom, mulher de Leopold Bloom, o protagonista, e releitura de Penélope, da Odisseia, de Homero.
É este texto vigoroso, sem sinais de pontuação, que a atriz e cantora Cristina Banegas representa no monólogo argentino Molly Bloom, com direção de Carmen Baliero, em cartaz nesta terça (10/9) e quarta (11/9), às 21h, no Teatro CIEE, em Porto Alegre. Em entrevista concedida por e-mail, Cristina conta os desafios de adaptar a obra do escritor irlandês com economia de gestos e de recursos cênicos, fazendo sobressair a musicalidade do texto.
Zero Hora - O monólogo de Molly Bloom inspirou diferentes encenações. Por que o texto a interessou?
Cristina Banegas - Há mais de 12 anos, fizemos a tradução e a adaptação de Molly Bloom com a tradutora do inglês Laura Fryd, trabalhando mais de um ano. Ambas havíamos participado de um seminário sobre Ulisses sugerido pelo escritor, tradutor e especialista em literatura inglesa Carlos Gamerro, e estávamos muito entusiasmadas em trabalhar esse monólogo interior, esse rio de palavras, sem sinais de pontuação, que é o último capítulo do livro. Naquele momento, não conseguimos os direitos. Pudemos realizar este espetáculo apenas em janeiro de 2012, quando foram completados os 70 anos de morte de Joyce e os direitos foram liberados. A ideia de trabalhar sobre um texto que se refere a uma pura subjetividade me pareceu muito estimulante para a "embocadura" do discurso, para a construção dos pensamentos e das associações de Molly em sua noite de insônia.
ZH - A senhora certa vez declarou que, na representação do texto, buscou ser "apenas uma voz". Poderia explicar esta ideia?
Cristina - Sim. Renunciamos a uma "encenação" e escolhemos a ideia de um "concerto", de uma voz, uma voz dentro de uma cabeça, como se fosse a música do pensamento dessa mulher que, em absoluta intimidade, revela suas fantasias, recordações e associações. É estranho querer ser apenas uma voz no teatro, onde o corpo é uma presença inexorável. Mas o corpo está absolutamente presente. Não era nossa intenção fazer um trabalho radiofônico, mas teatral, de modo que a voz não está separada do corpo em cena.
ZH - Em mais de uma ocasião, a senhora comparou este texto de Joyce com a música. Por quê?
Cristina - Comparo porque o texto é realmente musical, porque também é uma metáfora da cabeça de uma mulher. Significa pensar musicalmente a construção desse discurso, desse monólogo interior. As dinâmicas, os ritmos, os crescendos, os pianíssimos, os staccatos são partes de uma linguagem musical com a qual construímos a partitura, quer dizer, o discurso de Molly. Uma das ideias mais difíceis de traduzir para a voz falada em cena foi a velocidade da mente de Molly, a vertigem de uma cabeça lançada em seu devir.
ZH - A senhora acredita que sua interpretação de Molly destaca características que o leitor do livro não percebe, necessariamente, com tanta intensidade? Um certo humor, por exemplo.
Cristina - Há muitos momentos em que o público ri. É que Molly fala sem censura, é muito transgressora em suas fantasias e teorias e segue sendo inquietante, mesmo que tenha passado quase um século desde que o texto foi escrito. Joyce, escrevendo de dentro da cabeça de uma mulher, constrói o gozo de Molly com humor, celebra e reivindica a afirmação do desejo da mulher em um momento em que nem sequer a psicanálise o fazia.
Fluxo de consciência
Espetáculo argentino encena último capítulo de "Ulisses", de James Joyce
Com Cristina Banegas, "Molly Bloom" será apresentado nesta terça e quarta em Porto Alegre
Fábio Prikladnicki
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