Poeta, tradutor e ensaísta, o paulista Augusto de Campos, 81 anos, é uma das figuras de proa da reflexão sobre a cultura brasileira, tendo se destacado a partir dos anos 1950, com o movimento concretista. Nesta entrevista, concedida por e-mail, Campos fala sobre poesia, história da literatura e música de vanguarda.
> Espetáculo Poemúsica reúne Augusto de Campos, Cid Campos e Adriana Calcanhotto
Zero Hora - A poesia concreta, a exemplo de outros movimentos artísticos, é estudada, nos bancos escolares, como um fenômeno que diz respeito a uma época específica. Como o senhor vê a permanência da influência do concretismo na paisagem cultural brasileira hoje?
Augusto de Campos - Apesar da inclusão até em livros didáticos, a poesia concreta continua, até hoje, a ter admiradores e detratores. Sinal, talvez, de sua longevidade. Queira-se ou não, o Concretismo pôs em xeque a linguagem poética, a crise do verso e da discursividade. Vejo nas poéticas digitais uma confirmação de nossas propostas e um caminho para novas aventuras literárias. E já há um geração jovem apostando seu trabalho nessa direção.
ZH - Entre os conceitos que o senhor e seu irmão Haroldo de Campos ajudaram a difundir, está o da tradução como um ato de criação. Isso, no entanto, nem sempre foi assim. Como surgiu, para o senhor, o interesse pela tradução em um tempo no qual ela não desfrutava do prestígio que veio a ter?
Campos - O mestre de todos foi Ezra Pound, cuja obra se opôs à tradução literal e firmou o conceito de crítica-via-tradução. Ainda assim, quando se trata de poesia, há poucos representantes da tradução-arte. Muitos se abalançam a traduzir poetas do passado sem dominar as técnicas do verso. Paradoxalmente, os concretos são dos poucos que sabem versificar. As melhores traduções - as traduções criativas - são aquelas que não parecem tradução. Mas são raras as que atingem esse resultado.
ZH - Influenciada pelo pós-estruturalismo, a sua geração representou não apenas uma renovação na criação, como também na reflexão crítica. O livro de seu irmão Haroldo de Campos, O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira, de 1989, causou desconforto em setores do mundo acadêmico ao confrontar a visão de Antonio Candido sobre a história da literatura brasileira. O senhor ainda vê resistência na intelectualidade brasileira com os aportes teóricos que vocês trouxeram?
Campos - Sem dúvida, ainda há muita resistência. Apesar de toda a erudição e clareza do seu discurso, a formação sociológica de Antonio Candido pesou mais do que se imagina sobre a recepção da literatura inovadora. Impediu-o, por exemplo, de reconhecer a importância do Barroco, a de um Sousândrade ou de um Kilkerry. Essa limitação já fora detectada por Oswald de Andrade, que chamava jocosamente de "chato boys" os críticos dessa linha. Candido não foi além de João Cabral. E seus discípulos ou radicalizaram o seu sociologismo literário ou se acomodaram. Só recentemente essa postura acadêmica vem mudando.
ZH - O senhor foi um pioneiro na reflexão sobre a música popular, notadamente nos ensaios das décadas de 1960 e 70 reunidos no livro Balanço da Bossa e Outras Bossas, que lançou novas luzes sobre a bossa nova e a MPB. Observando com a distância do tempo, qual a importância de sua contribuição para a consolidação de um pensamento sobre a música popular?
Campos - Sei apenas que fui dos primeiros a perceber a importância do Tropicalismo, talvez porque, uma década antes, já tinha vivido a experiência do confronto com o público. E talvez porque tinha muita familiaridade com o repertório das dissonâncias, atonalidades e ruídos da música moderna. Hoje é mais fácil dar-se conta do que aconteceu.
ZH - Em diversos textos, o senhor se debruçou sobre a música de concerto contemporânea. A música de vanguarda, por assim dizer, conseguiu influenciar a música como um todo ou é uma revolução que está, até hoje, restrita a um grupo de iniciados?
Campos - A poeira radioativa da música de vanguarda não deixou de afetar a música como um todo. O que acontece é que o público ainda não foi apresentado a ela. É a arte mais desfavorecida pelas mídias. Se a música de vanguarda está restrita a um grupo de iniciados, é por isso e pela timidez do repertório de música de concerto. Felizmente hoje, no YouTube, você pode encontrar o que há de mais avançado em música moderna e contemporânea.
ZH - A ideia da vanguarda perpassa sua trajetória. O senhor acredita que este ainda seja um conceito pertinente do ponto de vista crítico?
Campos - "Vanguarda" é o que está na frente, nada mais. Leia-se: liberdade e curiosidade para os artistas que desejam não apenas expressar, mas renovar. Eu prefiro falar em "invenção", porque o termo parece abarcar um universo mais amplo: não sugere apenas o futuro, mas incorpora a experiência do passado. Arnaut Daniel, trovador do século 12, foi um grande inovador. De todo modo, o termo "vanguarda" não deixa de ser útil. Todo mundo sabe o que quer dizer. E a toda hora surgem novos livros com o título de "avant-garde"...
ZH - Como foi criada a parceria artística com Adriana Calcanhotto e com seu filho Cid para o espetáculo Poemúsica?
Campos - Tudo começou em fins dos anos 1980, quando Cid se aventurou a produzir uma versão plurivocal do poema cidade. Depois vieram outras composições. Quando vimos, estávamos a caminho de recuperar a dimensão sonora da poesia "verbivocovisual", posta em foco nas oralizações de Poetamenos, em 1955. Os tropicalistas já tinham dado uma nova vida a essas especulações, quando Caetano Veloso interpretou os poemas Dias dias dias e Pulsar nos anos 1970. O trabalho que fiz com Cid ficou documentado no CD Poesia É Risco e no espetáculo multimídia que teve a sua estreia em 1995. Mais recente foi o encontro de Cid com Adriana. A primeira parceria se deu quando ela incluiu no seu repertório o poema O Verme e a Estrela, de Kilkerry. Continuou, com novas gravações, até chegar a Sem Saída, um dos meus últimos poemas, e a uma canção de Arnaut Daniel que traduzi. Daí a proposta atual, Poemúsica, que busca mapear o diálogo entre as duas artes, a partir das primeiras experiências da poesia concreta.
ZH - Quais são seus projetos em andamento e os próximos?
Campos - Acabo de apresentar ao Sesc de São Paulo um projeto que visa recuperar as primeiras apresentações do Pierrot Lunaire, de Schoenberg (compositor austríaco, 1874 - 1951), com os textos traduzidos para o português e a interpretação de Edmar Ferreti, sob a regência de Ronaldo Bologna, em 1980. Salvei esse registro histórico numa fita cassete. A estreia original dessa obra básica, escassamente conhecida entre nós, se deu há cem anos... Preparo uma nova edição de Coisas e Anjos, de Rilke, com mais 70 poemas. Outra, atualizada, de Pagu: Vida-Obra. Venho de lançar Profilogramas, álbum de poemas dedicado aos artistas concretos de São Paulo. E gostaria de reunir novos textos num Música de Invenção 2.