As sobras recebem pouca atenção. Relegadas ao fundo da geladeira, abandonadas entre condimentos e recipientes esquecidos, elas são basicamente vistas como lanches da madrugada, jantares improvisados ou o almoço de amanhã. Até mesmo a palavra "sobras" carrega a conotação negativa do indesejado, do que não foi comido, dos restos.
Judith Jones, editora conhecida por ter defendido o livro Mastering the Art of French Cooking, de Julia Child, disse o mesmo em sua biografia. "O destaque está sempre no prato que vai impressionar seus convidados, e o cordeiro de ontem, mesmo acompanhado de purê de batatas e chamado de 'torta especial', provavelmente não conseguirá isso", escreveu ela. "Mesmo assim, muitos dos grandes pratos do mundo, como o cassoulet e a moussaka, nasceram a partir de sobras."
Nas raras ocasiões em que as sobras recebem atenção, geralmente é no contexto de economia ou ecologia - não permitir que nada vá para o lixo. Essas são metas nobres, mas como cozinheiro, e como alguém que ganha a vida vendo comida como arte (sou fotógrafo de alimentos), prefiro focar em seu potencial como ingredientes. Aquelas sobras abatidas são uma grande fonte de inspiração, e podem abrir caminho para um maior sucesso na cozinha. Elas são um convite à improvisação.
Cozinheiros são como músicos; há os que leem a partitura e a reproduzem nota a nota, e os que conseguem improvisar e adaptar para tornar uma música algo seu. Esse é o tipo de cozinheiro que muitos desejam ser, o jazzista com uma frigideira.
Meu trabalho exige que eu siga receitas ao pé da letra, para que o prato pronto na foto seja exatamente como o autor descreveu. Mesmo antes de fotografar comidas profissionalmente, porém, eu seguia as instruções cuidadosamente. Embora seja necessária certa habilidade para fazer isso com sucesso, não há muita criatividade envolvida.
Certa noite, enquanto eu fitava minha geladeira - que estava repleta de comida após uma sessão de fotos -, pensei: "Não tem nada para comer aqui". Então tive uma revelação.
Comecei a pegar todo tipo de sobras, partes e pratos pré-prontos. Aquilo eram as notas que poderiam formar uma canção completamente nova.
Peguei a carne de coxas de frango originalmente usadas num cozido, piquei cenouras e cebolas, resgatei o arroz que descansava na prateleira de baixo do refrigerador e saquei minha frigideira grande. O que emergiu foi uma fritada rápida com pinhões e passas, um aceno a minhas raízes sicilianas. Estava delicioso, sim, mas o mais importante foi o sentimento de realização.
Para transformar sobras na estrela, ajuda ter alguns acompanhantes de prontidão. Eu tenho alguns ingredientes-chave na cozinha, que adicionam brilho a um prato ou ajudam a criar um novo. O caldo, por exemplo, ajuda a trazer umidade e sabor a alimentos já cozidos quando você os reaquece, mesmo se eles não contivessem caldo inicialmente - como grãos. Guarde as cascas de queijos duros, como parmesão, pecorino ou gruyère, para colocar em sopas e guisados; elas acrescentam uma suculência sedosa e salgada.
Adoro guardar massa de pizza no freezer. Qualquer carne, até mesmo sobras de um ensopado ou assado, pode ser usada para rechear uma pizza ou calzone. O mesmo vale para pastéis ou gyoza; é possível fazer bolinhos ou ravióli usando praticamente qualquer coisa.
Usando essa mesma massa, criei uma versão de torta de carne jamaicana com costela de boi, tirando a carne dos ossos, retemperando-a e reaquecendo-a num pouco de caldo. Acrescentei algumas pimentas e cebolas e coloquei a mistura em pequenas bolas de massa, que foram assadas no forno. Para algo ainda mais escandaloso, você pode até mesmo fritar essas bolinhas.
Migalhas crocantes de pão podem adicionar textura a vegetais cozidos - ou a qualquer coisa que não tenha uma crocância satisfatória. Polvilhá-las dentro ou sobre gratinados, massas salteadas e cozidos dá ao prato com sobras uma sensação de feito na hora. Devo minha maior realização na área de sobras às migalhas de pão: uma variação da berinjela à parmegiana.
Após uma sessão de fotos, fiquei com uma abundância de berinjelas assadas - e, embora a berinjela seja meu legume favorito, assada é a preparação de que menos gosto. Sem empanar e fritar a berinjela, eu temia que o prato ficasse encharcado e disforme. Alternei as migalhas de pão com a berinjela para dar ao vegetal aquele sabor empanado e alguma crocância. Prossegui com minha preparação habitual, reduzindo um pouco o tempo de cozimento, e o resultado ficou incrivelmente próximo ao original.
É possível dominar as sobras mesmo sendo iniciante. Quando encontrar sua geladeira cheia de pequenas porções de vegetais (cozidos ou crus) e tiver ovos, queijo e ervas, um omelete ou uma fritada são ótimas opções. Se estiver num clima fusion e esmiuçar a prateleira de temperos, seus resultados podem ser extasiantes.
À medida que você ganha confiança e aprende mais sobre quais ingredientes e temperos combinam entre si, seu omelete pode ir do básico, como espinafres ao alho, a criações mais complexas. Fiz um recentemente usando sobras de repolho refogado e abóbora, temperando um pouco para o lado doce.
Pratos com ovos costumam ser salgados na cozinha ocidental, mas a combinação de ovos e açúcar é comum no Japão - e foi um experimento que deu certo. Você pode improvisar sobre um tema indiano usando cominho, curry e cardamomo, ou dar um toque grego com queijo feta, endro e cebolas roxas.
Se você é um cozinheiro mais avançado, tente algo um pouco mais grandioso. Usando os mesmos ingredientes de inspiração grega, é possível criar uma torta de massa folhada que renderá muitos elogios à mesa. Ou use a massa folhada para fazer pequenas tortas de frutas; espalhe chocolate derretido por cima delas como toque final.
Tanto o guitarrista novato, que toca as primeiras notas de Smoke on the Water com uma alegria aturdida, quanto o músico que desce do palco após uma perfeita interpretação de 32 minutos de Free Bird, precisam encontrar inspiração para o que fazem. Para mim, são as sobras. Além disso, o bis é sempre a melhor parte do show.