Aos 44 anos, Negra Li está na correria e, segundo ela, o principal motivo é a maternidade. Ela tenta equilibrar a vida artística com a vida pessoal — mãe solo, faz malabarismo para lidar com a criação dos dois filhos, Sofia, 13 anos, e Noah, cinco. Enquanto isso, prepara seu show para o Rap in Cena 2023, onde será uma das atrações principais, neste domingo (29) no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, em Porto Alegre — o evento também ocorre no sábado (28). As atividades começam sempre ao meio-dia, e os ingressos estão à venda pelo Sympla.
Artista multimídia, ela despontou para o mundo do rap ao fazer parte do grupo RZO, ainda nos anos 1990. O Brasil inteiro passou a conhecê-la quando a cantora viveu uma das protagonistas de Antônia, que teve duas temporadas na TV Globo, entre 2006 e 2007.
De lá para cá, Negra Li emplacou diversos projetos — atualmente, prepara um EP totalmente voltado para o rap, além de estar no elenco da comédia Casamento à Distância, que estreia em breve na Netflix.
Para 2024, a artista, um dos pilares do rap nacional, será a madrinha de bateria da escola de samba paulistana Vai-Vai, que terá como enredo Capítulo 4, Versículo 3 — Da Rua e do Povo, o Hip-Hop: Um Manifesto Paulistano. Ou seja, ela não para.
Você disse que está meio atucanada. Explique como está conseguindo equilibrar a carreira com a vida de casa.
Cara, eu não consigo. Aí é que tá. Esses dias, postei nos stories falando o quanto eu não romantizo mais a maternidade. Eu dei uns surtos, queria ter mais tempo para mim, queria poder estar namorando e não tenho nem tempo para pensar nisso. É muito difícil equilibrar o lance do trabalho e da maternidade, principalmente quando você não tem uma rotina. É bem desgastante, só que eu faço bem na medida do possível, porque se as pessoas percebem que além de eu fazer muito bem o meu trabalho, eu ainda faço uma coisa saudável em relação à família, o bem-estar familiar, com passeios com as crianças, com o dia a dia e tal, então eu acho que consegui dar o meu melhor. Mas, com certeza, sempre falta alguma coisa.
Como está a sua preparação para a estreia no Rap in Cena?
A expectativa está grande, e a gente está se preparando, apesar de não termos o tempo que gostaríamos. Contratei um trabalho de VJ, um diretor musical, um diretor artístico, tudo para tentar levar o melhor, pois nunca tive tempo de parar e falar: "Meu, preciso estruturar um show e tal". O Brasil, agora, está com muitos festivais, então a gente precisa sempre se renovar e tentar acompanhar essas mudanças, essas evoluções. Então, pode ter certeza que, da minha equipe, de mim, a gente está tentando o melhor.
Vem material novo?
Estou, atualmente, trabalhando em um EP, mas, infelizmente, não vai dar tempo de lançar nenhuma (música) antes do Rap in Cena, porque era o nosso intuito colocar uma música nova no repertório. E isso acontece porque estou bem minuciosa com o meu trabalho, fazendo uma grande pesquisa, percebendo o público que me acompanhou, o que eu ganhei mais recentemente, porque foram três gerações que eu acabei pegando. E eu sei que vou surpreender com esse meu novo EP, porque as pessoas que sentiam falta da Negra Li com mais lançamentos de rap vão matar a saudade. O EP inteiro vai ser só de rap.
Em uma matéria de 2004 da Folha de S.Paulo, é dito que Negra Li "furou a barreira do hip-hop". E isso há quase 20 anos, com você ainda muito jovem. Como enxerga esta sua trajetória?
Sou muito orgulhosa da minha trajetória, de tudo que eu conquistei. Já é difícil você conseguir alcançar um determinado lugar, mas se manter não é fácil, é desafiador. Existem momentos em que a vida é uma montanha-russa: uma hora você tá embaixo, outra em cima. Mas é quando você está lá embaixo que tem que ficar mais atenta, porque é o que vai te impulsionar para cima de novo. É a tal da resiliência. Eu sinto que todos os momentos da minha carreira foram preciosos para que eu permanecesse com a cabeça firme, com o meu emocional ok e sempre estudando para manter a forma, para estar sempre atualizada.
Como você faz para ficar atualizada?
Às vezes, a gente que vem de uma outra época quer resistir a algumas novidades, mas quando eu aprendi que o novo é bacana, e eu adoro ser essa pessoa de me desafiar, eu peguei um gosto por isso. Por exemplo, chamo umas pessoas mais novas para fazer meus campings (encontros para compor músicas) e, quando eu vejo, já estou fazendo coisas novas. E isso que é bom, estar sempre estudando para, quando vir a novidade, você conseguir alcançar, independentemente do flow.
Por falar em novidades, neste ano são comemorados os 50 anos da cultura hip-hop. E você é uma das mulheres pioneiras do rap no Brasil. Como você, com esta trajetória de 26 anos, que passou por várias gerações, enxerga essa evolução do rap, que agora tem como forte vertente, por exemplo, o trap?
Gosto muito de ver o que se tornou, porque era muito difícil, era marginalizado. Tinha muitas pessoas que faziam, mas poucos ganhavam dinheiro com isso. Era algo para que a gente pudesse manter a mente ocupada, para não cair nas drogas, em uma vida marginalizada. Era para desabafar, para abrir a mente dos jovens, um meio de relatar as coisas que a gente via, o que a periferia sofria. O hip-hop é uma coisa muito linda, sabe? É um salva-vidas. Então, quando a gente começou, não era nesse intuito de ganhar dinheiro, porque o próprio business, a música, não era para o rap. Mas ver que agora as pessoas, além de poderem viver a cultura, ainda conseguem ganhar dinheiro, eu acho muito legal. A gente carpiu para facilitar para quem veio depois. Alguns jovens parecem que querem se desculpar por algumas coisas. Uma vez, eu falei para o L7nnon: "Cara, pode fazer, pode ostentar". A gente quer que as pessoas usufruam, porque a gente não se matou no começo para que ficasse para sempre difícil.
Mas existe uma parcela mais antiga que acha que o rap tem que ter sempre uma crítica social, né?
Pois é. Lógico que é gostoso também que ainda tenham alguns preocupados com a causa social, como o L7nnon, que está sempre ali envolvido. Isso é bacana, porque o rap veio para isso também, para salvar vidas, para ajudar as pessoas, para levar informação, para incentivar os jovens a estudarem, as crianças a se manterem longe do crime. Mas agora, como uma profissão, é mais do que isso, agora é um meio de ganhar dinheiro, mudar a sua história, a sua vida e a vida de seus familiares.
E sobre a questão de ser uma mulher no meio deste cenário que é predominantemente masculino? Inclusive, o próprio line-up do Rap in Cena, mesmo trazendo várias vozes femininas, ainda conta com uma maioria de homens.
Dentro do movimento, somos minoria. E isso nada mais é do que uma herança do patriarcado, porque não é só dentro do rap, em todas as funções a gente vê que a mulher é a minoria e, muitas das vezes, quando ela está lá como os homens, está ganhando menos. E a gente ainda vai sofrer um bom tempo para conseguir chegar a uma igualdade salarial e de espaços. A ideia do feminismo era uma coisa que eu não entendia e já cheguei a falar que não era feminista, porque não sabia o real sentido da palavra. Ser mulher não é fácil, com um mundo onde o patriarcado tomou conta a vida toda. A maternidade, por exemplo, é totalmente atrelada à mulher, é a gente que fica ali mais próximo do filho. Eu mesmo já parei de estudar música várias vezes, já era para estar formada, ser uma professora de música, mas tive que parar por conta da maternidade. Mas acho que a gente tem conseguido lutar por melhores espaços e hoje sou orgulhosa de ser feminista, porque entendo o que é o feminismo. E tenho esperança de que algum dia a gente vai falar e ocupar os espaços de igual para igual, mas, por enquanto, a gente ainda tem que lutar.