— Vou te mostrar algo que todo mundo faz — teria dito Michael Jackson a um garoto de 10 anos, antes de supostamente começar a abusá-lo.
Aquilo teria sido o começo, conta o californiano Jimmy Safechuck, hoje aos 41 anos, em Deixando Neverland, documentário de quatro horas que será exibido em duas partes na HBO neste fim de semana.
Na casa do músico, rancho de mais de mil hectares com zoológico, parque de diversões e trenzinho, Michael teria abusado do garoto no sótão, no fliperama, na torre do castelo, na sala de cinema, na cabana indígena... Quanto mais inacessível e afastado de adultos, melhor.
— Não ser pego era fundamental. Ele falava que nossas vidas terminariam se soubessem — diz Safechuck.
Outra suposta vítima, o australiano Wade Robson afirma que, aos sete anos, era obrigado a se curvar na borda da cama e tinha de olhar um display de Peter Pan enquanto seu corpo era beijado. O quarto do músico, "arsenal de docinhos e pornografia", era guardado por um sistema com várias portas de forma que houvesse tempo hábil para eles se vestirem se alguém entrasse.
A obra do diretor britânico Dan Reed, apoiada nesses dois depoimentos e nos de alguns dos parentes de seus autores, detalha não apenas o que teria se passado entre as quatro paredes, mas o comportamento insidioso do ídolo pop, que seduzia a todos com envelopes cheios de dólares e punha as crianças contra os seus pais.
Sem permitir qualquer benefício da dúvida, Deixando Neverland sustenta que Michael destroçou pelo menos duas famílias e foi responsável indireto até por um suicídio.
Desde que o documentário estreou no Festival Sundance, em janeiro, o que se pondera é que o filme tem voltagem suficiente para implodir a carreira de qualquer grande artista. Mas diante de um músico já morto e com o porte de ser uma das maiores figuras da cultura do século 20, a questão fica mais nebulosa.
Crítico de cinema no New York Times e fã de Michael desde a época do estrondoso Thriller, Wesley Morris resumiu o impasse. Trata-se do legado de uma "pedra fundamental" do pop, que influenciou nomes como Justin Timberlake, Britney Spears, The Weeknd e Bruno Mars. Ele é central para a cultura americana e faz parte da bagagem de mesmo quem não tem consciência disso, afirma.
Alguns estragos esparsos despontaram após o filme ir ao ar nos Estados Unidos. Produtores do desenho Os Simpsons baniram um episódio que conta com a voz do cantor, e a grife Louis Vuitton apagou referências a ele de sua coleção apresentada em janeiro. Grandes rádios no Canadá e na Nova Zelândia decidiram não tocar mais seus hits.
Apesar disso, levantamento da Nielsen mostrou que a venda de discos e canções do cantor, tanto por sua fase solo quanto por sua participação no Jackson 5, aumentou 10% após o filme ir ao ar. No streaming, o crescimento foi de 6%.
O lançamento tampouco abalou a reputação do artista nas redes sociais. Análise do jornal Folha de S.Paulo mostra que as maiores páginas em homenagem ao cantor, inclusive a página Michael Jackson no Facebook, com 72 milhões de curtidas, não tiveram variações relevantes, nos últimos 12 meses, na quantidade de seguidores.
De qualquer forma, o espólio do cantor contra-atacou. Acionou a HBO na Justiça americana, chamando o filme de sensacionalista, ultrajante e patético, e pedindo reparação de danos que podem exceder os US$ 100 milhões.
Os representantes do músico insistem também que Safechuck e Robson foram ouvidos em juízo quando Michael foi processado por outras supostas vítimas e que, à época, ambos negaram abusos. No filme, os dois explicam que estavam tomados de sentimento ambíguo em relação ao amigo "generoso e sorridente" e maior ídolo pop de qualquer criança na virada dos anos 1980 para os 1990.
O rapper TI entrou no coro da defesa, afirmando que "mortos não podem se defender" e que o filme faz parte de uma agenda para destruir a cultura negra. "Há vários exemplos de pedofilia", escreveu numa rede social, pedindo que se investigasse o passado de Elvis Presley, por exemplo.
Entre fãs brasileiros que já viram o filme, impera incredulidade.
— Não acredito que Michael possa ter feito algo errado — diz o paulistano Rodrigo Teaser, 38, o mais famoso intérprete do cantor no país (ele refuta o termo "sósia", pois não tenta ficar igual ao ídolo).
— Outras crianças, famosas ou não, já tinham dito quase tudo o que está lá — diz. — Condeno uma obra que dá só um lado e bate em uma pessoa que não pode se defender.
Dono de um canal no YouTube e de uma página no Facebook sobre o músico, Daniel Neves, 30, diz que as acusações são infundadas. E defende separação entre vida e obra.
Uma das vozes brasileiras que em tempos recentes interpretou Michael nos palcos, a paulista Isabel Fontana Garcia, 41, a Blubell, defende que não existe uma conduta obrigatória da indústria em situações afins.
— É um assunto pessoal. Não sei dizer se pararia de ouvir ou cantar a obra do Michael.
Para o filósofo Francisco Bosco, autor de A Vítima Tem Sempre Razão?, não se pode nem separar nem fundir totalmente o artista de seu trabalho.
— Os signos devem estar todos expostos e dispostos: obra e vida, acusação e defesa, forma e moral — para que cada um faça o seu juízo e determine a sua experiência.
Ela ressalta que, nesse caso, "não foi novidade descobrir que ele foi uma pessoa desequilibrada", ao contrário do que afirma ter sentido ao conhecer as acusações contra o comediante Louis CK.
Bosco também não crê que filmes devam evitar expor pessoas acometidas de transtornos como a pedofilia.
— A questão da fama traz consigo a suspeita de blindagem a esses crimes (por causa do poder), o que é uma questão a ser endereçada politicamente.
Deixando Neverland. EUA, 2019. Direção: Dan Reed. HBO, sáb. (16), às 20h (parte 1); dom. (17), às 20h (parte 2).