Por Leonardo Loureiro Winter *
A noite de terça-feira (20) foi absolutamente estelar para o público gaúcho apreciador da música de concerto com a performance arrebatadora do Maisky Trio no Teatro do Sesi, em Porto Alegre: repertório de primeira grandeza executado por intérpretes da mais alta qualidade em um grupo coeso e consciente de cada filigrana da trama musical. Foi um verdadeiro presente de final de ano para o público, com realização da Branco Produções e apoio da empresa Meta nas comemorações dos 70 anos de fundação do Estado de Israel.
Mischa Maisky, violoncelista letão nascido na cidade de Riga em 1948, foi vencedor do Concurso Tchaikovsky em 1966 e estudou com dois dos maiores violoncelistas do século 20 (Rostropovich e Piatigorsky). Desde 1975, percorre as mais prestigiosas salas de concerto do mundo, sempre ao lado de grandes intérpretes e regentes do cenário mundial. Porém, nem tudo são flores e honrarias na difícil vida de um músico: que o testemunhem os 18 meses de vida nos quais Maisky permaneceu preso em um campo de trabalhos forçados em Gorky em 1970.
Maisky, que tem uma movimentada carreira internacional de concertos em praticamente todas as latitudes do mundo, demonstra ainda muita vitalidade e inspiração musical. O músico é um verdadeiro poeta do som, druida inspirado que combina em seu cadinho timbres, emoções e poéticas com total domínio técnico e expressivo.
O violoncelista, que já havia se apresentado com a Ospa na longínqua década de 1990, dessa vez retornou com o Maisky Trio, constituído por seus dois filhos mais velhos – Lily Maisky (piano) e Sascha Maisky (violino) –, que demonstraram cabalmente a fecunda e generosa herança genética conjugada com uma abnegada dedicação à música: são absolutamente tão geniais quanto o pai e tocam com desenvoltura e compreensão raramente escutadas.
Programa sem fáceis concessões
O magnífico programa escolhido especialmente para Porto Alegre, sem fáceis concessões, foi constituído por obras de Bach, Schubert, Rachmaninov e Shostakovich, demonstrando a versatilidade dos músicos em trazer interpretações refinadas e verdadeiramente avassaladoras em obras paradigmáticas da história da música. A Suíte de Bach para violoncelo solo foi ofertada por um refinado e paciente sábio no ofício: absolutamente consciente dos desafios e caminhos em uma das composições mais enigmáticas do mestre alemão, unindo leveza, lirismo e ritmo pujante.
De Franz Schubert foi escolhida a belíssima e conhecida – principalmente pelo primeiro movimento – Sonata "Arpeggione", em que Lily e Maisky demonstraram densidade e profundidade interpretativa no plot schubertiano.
Somente com a primeira parte do programa o público poderia se dar por satisfeito; porém, a segunda parte reservou emoções ainda mais fortes. O Trio Elegíaco nº 1 de Rachmaninov foi escrito em Moscou em 1892, quando o compositor contava com apenas 19 anos.
A obra, que guarda uma estreita relação com o Trio de Tchaikovsky – mentor e influência predominante na juventude de Rachmaninov –, é constituída em movimento único e explora a virtuosidade do piano, instrumento no qual o compositor alcançou grande notoriedade em vida. O tema lúgubre é apresentado pelo piano, sendo logo reapresentado no violoncelo e depois no violino. Após um desenvolvimento cada vez mais envolvente e vivaz, o Trio finaliza com uma pungente marcha fúnebre. O destaque da obra, verdadeiro concerto para piano, foi de Lily, que revelou absoluto domínio técnico e expressivo a favor da música.
O Trio nº 2, op. 67 de Shostakovich, a mais desafiadora e complexa obra da noite, é uma peça revolucionária em quatro movimentos. Composta durante a II Guerra (1944), foi dedicada a Ivan Sollertinsky, amigo do compositor e ávido melômano. A obra apresenta intrincadas passagens técnicas em todos os instrumentos e revelou a competência e musicalidade do Maisky Trio em uma execução impecável.
Enfim, palavras são sempre limitadas, mas podemos afirmar que quem presenciou este concerto conheceu a beleza de perto. Quiçá, como em tempos passados, tenhamos a volta destas divindades em nossos pagos, trazendo mais harmonia, sensibilidade e humanismo para nossa sociedade.
* Músico e professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da UFRGS