De homem gay, preto e periférico a uma entidade de gênero fluido, desabrocha uma mulher trans que cresce e se descobre dentro da música. Liniker compartilha no mainstream um universo particular, em muito similar ao de outros jovens da Geração Z. Para os filhos do mundo hiperconectado, o tempo passa em velocidade acelerada. Tanto que Liniker não quer falar de quando arrebatou as redes sociais no já distante 2015. Dois anos, para ela, são quase uma eternidade:
– É estranho perguntarem sempre sobre o começo, sendo que hoje já temos dois anos de estrada. Tenho vontade de falar dos meus processos, do que temos feito agora, não do passado – enfatiza.
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Com a terceira passagem por Porto Alegre marcada para sábado (26), Liniker e os Caramelows pretendem ocupar o Araújo Vianna com a intensidade de seu primeiro álbum, Remonta (2016). Apesar do nome que homenageia o jogador inglês Gary Lineker, famoso por sua atuação na Copa do Mundo de 1986, estrangeirismos não representam o som dos Caramelows. Não se pode dizer que a banda faça black music. O que desliza pelos acordes dos jovens de Araraquara, interior de São Paulo, são timbres de pretos, pardos, de Brasis múltiplos e periféricos.
Em uma mistura de ritmos potentes, indo do samba ao blues, passando pelo rock independente, Remonta vale-se da voz grave de sua vocalista – que, nas passagens mais confessionais, transparece a rouquidão da urgência, de quem tem muito a dizer ao público. A conexão é imediata. Tudo que a intensidade dos vinte e poucos anos mais deseja, tanto que "catarse" é uma das palavras que vêm à mente ao vê-los ao vivo.
– Saber que sou totalmente responsável pelas composições e que elas, junto ao público, tornam-se algo maior, só nosso... Nesta troca construímos algo único – diz Liniker sobre a experiência que cada apresentação proporciona.
E não têm sido poucas as oportunidades para essa construção coletiva. Nesse aspecto, o título Remonta não poderia ser mais preciso. Cada momento de Liniker no palco é um crescimento, uma reconstrução. Cada show, um aprendizado. Cada parceria, uma nova fagulha de inspiração e reverência. De contemporâneos transgressores das regras de gênero, como o pernambucano Johnny Hooker, até lendas da música brasileira, como Elza Soares, Liniker aproveita cada troca.
– Nas parcerias, vimos que nossa referência musical é mais aberta do que imaginávamos. A minha poesia, enquanto compositora, está indo constantemente a novos lugares. É muito bonito o caminho que temos feito na cena independente, ao entender que somos donos do nosso trabalho e de seus rumos.
A perspectiva agora é seguir a passos largos e sem fronteiras. A participação, em março deste ano, no festival norte- americano South by Southwest só atesta isso. Depois de uma turnê pela Europa e shows por todo o Brasil, Liniker atendeu ZH enquanto se preparava para mais uma viagem. O destino? Nova York, mais precisamente, o festival SummerStage. Lá, os Caramelows vão dividir espaço com a já parceira Elza Soares e com O Terno, companheiros de indie brasileiro. Em setembro, o Rock in Rio os espera com uma multidão de olhos e ouvidos prontos para a "remontagem espírito-musical" oferecida pela banda.
Mulher trans empoderada na cara do Brasil
Foi no programa Amor e Sexo, da Rede Globo, durante uma performance em que vestiu um tubinho prateado, que Liniker explodiu para o que se pode chamar de "Brasil profundo" – aquele no qual apenas a luz da televisão consegue penetrar. A estreia em rede nacional foi em março deste ano, cantando Geni e o Zepelim, de Chico Buarque.
– Acho que temos de ocupar a mídia de todo jeito. A gente se infiltra em lugares que não estaríamos de jeito nenhum.
Liniker diz isso porque é uma mulher trans e negra, a parcela mais atingida quando o assunto é violência de gênero e de classe no Brasil. Sobreviver sendo "bicha, preta e pobre", como já se intitulou em diversos momentos, é um desafio diário. Não é à toa que, em sua performance na TV, Liniker interrompe a canção de Chico para dizer com olhos vidrados e doloridos: "O Brasil é o país que mais mata travestis, transexuais, homossexuais e bissexuais no mundo. Isso tem que acabar. Basta".
Após segundos de silêncio, cantora e banda retomam triunfantes os acordes, gritando em uníssono: "Bendita Geni!". O clima é de festa, e a apresentadora Fernanda Lima parece encantada.
– Estar com nosso corpo em um programa no qual nossa voz é ouvida em vários lugares que a gente não consegue chegar é maravilhoso. Estar ali, ao lado de tantas pessoas potentes, ajudando quem não consegue ser ouvido é um presente – relembra a cantora, emocionada.
Podem procurar, está na internet. Uma jovem de apenas 22 anos, negra, que já foi homem gay, e depois fluiu, como uma boa música ou um rio, no caminho entre gêneros. E, por fim, em um processo de remontar-se diariamente, descobre-se mulher diante de um dos países mais perigosos para se ser transexual no mundo. Uma voz única, mas que ao mesmo tempo, representa tantos iguais a ela, ainda na margem, ainda esquecidos. Uma mulher de coragem, e que para a sorte da música e do Brasil, está só começando.
Liniker e os Caramelows – "Remonta"
Sábado, às 21h. Classificação: 16 anos
Auditório Araújo Vianna (Avenida Osvaldo Aranha, 685).
Ingressos: R$ 60 (mediante doação de 1kg de alimento não perecível, R$ 100 (3º lote), R$ 120 (4º lote) e R$ 160 (amanhã). Desconto de 20% para sócio do Clube do Assinante (exceto na promoção). Venda sem taxa: bilheteria do Teatro do Bourbon Country (Av. Túlio de Rose, 80), das 10h às 22h, e, apenas amanhã, bilheteria do Araújo Vianna, a partir das 14h. Venda com taxa: ingressorapido.com.br e call center 4003-1212.