A cena da música instrumental gaúcha está cada vez mais diversificada e vigorosa. Nesta semana, Porto Alegre vem testemunhando a renovação nessa área com o anúncio na terça-feira da expansão das atividades da seminal Oficina de Choro Santander Cultural e dos shows de grupos locais, de quarta até sábado, na Homenagem ao Jazz – evento que antecede o POA Jazz Festival. Uma das expressões mais inventivas desse gênero é a união dos ritmos regionais sulistas com outras sonoridades brasileiras, latino-americanas e internacionais – casamento praticado nos últimos anos por um considerável punhado de excelentes músicos e grupos, oriundos tanto do Interior quanto da Capital. Em comum, além do talento e da técnica, esses artistas são identificados em geral por sua juventude – alguns mesmo pela precocidade – e pelo interesse em absorver em seus trabalhos referências que extrapolam o contexto musical de onde se originaram.
Nascido em Santo Antônio da Patrulha, terra da Moenda da Canção, um dos mais importantes festivais de música do Estado, Samuca do Acordeon, 33 anos, é um dos muitos instrumentistas gaúchos criados no seio da cultura nativista que avançaram para outras searas – no seu caso, o choro. Samuca lança nesta quinta-feira em Porto Alegre seu quarto trabalho com show em um palco inusual: o barco Cisne Branco, que partirá do Cais do Porto às 19h levando o público para um passeio pelo Guaíba ao pôr do sol com a apresentação do solista, ao lado do Regional Imperial e de convidados como o cantor João de Almeida Neto. A base do repertório será o recém-editado álbum que o acordeonista gravou com o conjunto paulista, considerado uma das principais formações de choro do país e que já acompanhou nomes como Ataulpho Alves Júnior e Déo Rian – bandolinista carioca sucessor de Jacob do Bandolim no mítico grupo Época de Ouro.
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– O Regional Imperial fez um show na Capital em outubro de 2015, no qual participei como convidado. De cara veio a ideia de gravarmos um disco juntos. No começo do ano passado, a gente foi para uma pousada no meio do mato em Santo Antônio, onde ficamos uma semana comendo churrasco, tocando e fazendo os arranjos. Gravamos tudo em dois dias no estúdio em Porto Alegre. São todos craques. Eu jogo mal, mas me coloco bem – brinca Samuca em entrevista a ZH.
Disco de Samuca homenageia grandes nomes do choro
Ainda que o Rio Grande do Sul seja berço de grandes acordeonistas – ou gaiteiros, como se diz por aqui – que também se destacaram no choro, como Chiquinho do Acordeom (1928 – 1993), o CD de Samuca é o primeiro desse tipo de instrumentista inteiramente dedicado ao gênero gravado no Sul. As 11 faixas incluem releituras para clássicos como Escorregando, de Ernesto Nazareth, e Harmonia Selvagem, do compositor gaúcho Dante Santoro, além de composições inéditas como Urtiga no Dedo, de Samuca, e Rua do Ouro – parceria de João Camarero, violonista do Regional, com o também violonista Mathias Pinto, coordenador da Oficina de Choro Santander Cultural, da qual Samuca agora também é professor. Outro destaque do álbum são as participações de grandes instrumentistas gaúchos, dos quais dois partiram igualmente da música regional para expandir seus horizontes artísticos até o choro, o jazz e a MPB: os virtuosos violonistas Yamandu Costa (em Ou Vai ou Racha) e Paulinho Fagundes (em Escorregando).
– Comecei admirando Adelar Bertussi e aquele mundo dos bailes, depois Luiz Carlos Borges e Albino Manique. Quando vim para Porto Alegre, me dei conta de que, se eu só tocasse bem chamamé, vanera e chacarera, seria apenas mais um. Procurei no choro um diferencial. Descobri também que esses ídolos começaram no choro. Bertussi esteve no Rio, por exemplo, onde conheceu Sivuca e Luiz Gonzaga. O Sivuca, aliás, disse que o baião é o choro mal tocado, que o nordestino escutava no radinho no sertão e tentava imitar. A mesma coisa aconteceu aqui com o vanerão – explica Samuca, lembrando que eventualmente ainda acompanha formações como Os Fagundes e que só não participa de mais festivais nativistas "por falta de tempo".
SHOW COM SAMUCA DO ACORDEON, REGIONAL IMPERIAL E CONVIDADOS
Barco Cisne Branco. Embarque no Cais do Porto, às 18h30min. Partida do barco às 19h e desembarque às 22h. Preço do passeio com show: R$ 40.
Quartchêto vai de canto de rouxinol a Brahms em novo CD
Veteranos nesse cruzamento entre regional e universal, campo e cidade, Júlio Rizzo (trombone), Luciano Maia (acordeom), Hilton Vaccari (violão) e Ricardo Arenhaldt (percussão) formaram o Quartchêto há 15 anos. O conjunto comemorou a efeméride lançando seu terceiro disco no dia 23 de novembro passado com um show no Theatro São Pedro.
O CD homônimo com 10 faixas começou a ser gestado na turnê europeia de 2013 do quarteto. Foi na Alemanha, por exemplo, que Júlio e Hilton compuseram o primeiro tema, a graciosa Relsberger Nachtigall, homenagem ao rouxinol que não deixava os músicos dormirem na casa do produtor alemão onde estavam hospedados – e que invariavelmente cantava às 3h30min da madrugada. O solista da música é o passarinho, gravado ao vivo em uma das noites insones. Outra composição originada no Exterior é Vanerão de Gibão, escrita por Luciano minutos antes de entrar no palco na França.
O álbum inclui ainda uma versão campeira da Dança Húngara Nº 1, de Johannes Brahms (1833 – 1897), a curiosa mescla de foxtrote e xote de Fox Shot, que se inicia com a reprodução cheia de chiados de um velho disco de 78 rotações, e a milonga Não Vou Desistir de Ser Feliz, de Geraldo Flach (1945 – 2011), com direito a um solo do pianista gaúcho, recuperado de uma gravação deixada por ele. Destaca-se ainda a participação especialíssima do mestre trombonista Raul de Souza em dois temas: Vanerão de Gibão e Do Outro Lado.
A próxima apresentação do Quartchêto será segunda-feira, no Theatro Guarany, em Pelotas, com a Orquestra Unisinos Anchieta, dentro do Festival Sesc de Música.
Instrumental Picumã faz música miscigenada com pegada jazzística
Formado por Paulinho Goulart no acordeom, Matheus Alves na guitarra semiacústica, Texo Cabral na flauta, Miguel Tejera no contrabaixo e Bruno Coelho na percussão, o grupo Instrumental Picumã lançou seu primeiro disco nos dias 8 e 9 de dezembro passado, dentro da 2ª Mostra de Artes Cênicas e Música do Teatro Glênio Peres, em Porto Alegre. O álbum homônimo foi gravado na Capital em fevereiro de 2016 e reúne 10 faixas – a maioria composições dos próprios músicos do projeto – que agregam a sonoridade do choro, da bossa nova e do jazz fusion a ritmos latinos como candombe, salsa, tango e chacarera.
– O Instrumental Picumã surgiu de uma iniciativa de Texo Cabral e Paulinho Goulart. Sempre participamos em vários trabalhos em comum e sentíamos a necessidade de tocar nossos próprios temas e releituras das nossas influências, mas de uma forma nossa, imprimindo uma digital própria – esclarece Matheus Alves.
Formado em 2013, o conjunto tem uma pegada jazzística que se reflete na maneira como o CD foi gravado: ao vivo no estúdio, em três sessões também registradas em vídeo, que deve virar um DVD a ser lançado ainda neste ano.
Os integrantes do Picumã mantêm uma ligação forte com a música regionalista e o circuito dos festivais, participando também de outros projetos nessa área – o flautista Texo, por exemplo, é um dos fundadores do Tambo do Bando, grupo fundamental na modernização da cena nativista a partir de meados da década de 1980. O guitarrista Matheus acredita que uma eventual desconfiança mútua entre os diferentes meios musicais quanto ao tipo de som híbrido do Picumã já esteja superada:
– No meio regionalista, nunca ouvi nada, mas no início havia alguns comentários quando convidávamos pessoas para nossos shows. Mas isso só ocorria antes de conhecerem o som do grupo. Sempre fomos muito bem aceitos. Durante o financiamento coletivo que fizemos para finalização do CD, por exemplo, recebemos o apoio de vários nomes da música regional e instrumental.
Com presença protagonista da flauta de Texo na condução das melodias, o trabalho de estreia do Picumã passeia com a liberdade do improviso por diversos estilos, anunciados nos títulos de temas como Chacareta, Milonguera, Salsilla y Scooby, Valsinha Serena e Chorangotango.
– Esse sotaque que hoje está tão aclimatado no nosso som nada mais é do que as influências que sofremos de outras culturas e foram miscigenadas aqui – resume Matheus.
Discos
Samuca do Acordeon & Regional Imperial
Instrumental, independente, 11 faixas, R$ 20. À venda pelo telefone (51) 99843-5272. Cotação: 4 de 5.
Quartchêto
Instrumental, independente, 10 faixas, R$ 17,90. À venda em minuanodiscos.com.br. Cotação: 4 de 5.
Instrumental Picumã
Instrumental, independente, 10 faixas, R$ 24,90. À venda em minuanodiscos.com.br. Cotação: 4 de 5.