Mesmo que seja uma festa de caráter aberto, com um convite generoso para que os leitores participem de palestras e sessões de autógrafos em meio às bancas instaladas na Praça da Alfândega, a Feira do Livro de Porto Alegre também serve como um instantâneo de como anda no Rio Grande do Sul o sistema que faz da literatura um mercado. A julgar pelo que se vê na etapa de preparativos de sua 62ª edição, que será aberta no próximo dia 28, a crise bateu forte.
A Feira encolheu sensivelmente e terá em 2016 sua edição mais enxuta dos últimos anos. Para começar, porque a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL), que organiza o evento, teve dificuldade de levantar dinheiro. Principal fonte de recursos do projeto, a Lei de Incentivo à Cultura (LIC-RS) liberou aos organizadores a captação de R$ 925 mil – R$ 175 mil a menos do que o montante do ano anterior. Devido à retração econômica, a CRL afirma que cerca de R$ 150 mil do valor liberado não foi captado, por falta de apoiadores. Para fechar as contas, as estruturas na Praça da Alfândega foram diminuídas, obrigando o setor internacional do evento a migrar pela primeira vez para dentro do Memorial do Rio Grande do Sul.
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– Esta será uma Feira do Livro de resistência, de manter a qualidade do evento, para poder voltar a crescer nos anos seguintes – diz Marco Cena Lopes, presidente da Câmara e editor da BesouroBox.
Para Cena, é hora de intensificar as discussões internas na Feira, que presta um papel fundamental para a manutenção do mercado do livro no Estado: a formação de público leitor. Ele defende que, nas próximas edições, haja mais ações voltadas aos negócios, já que a Feira é, no fim das contas, organizada por livreiros, distribuidores e editores.
– A nossa Feira tem essa característica de ir além do perfil comercial, com mesas nas quais se discute muita literatura. No entanto, é também possível tratar de negócios no evento. A Feira de Buenos Aires faz isso, abrindo exclusivamente para editores dois dias antes de abrir para o grande público. Já tivemos ideia de promover algo nesses moldes aqui. Ainda não foi possível por falta de verba – conta Cena.
A diminuição da Feira é o reflexo no cenário local de dificuldades que as editoras gaúchas já enfrentam há mais tempo, com um mercado nacional cada vez mais concentrado. Em um horizonte no qual ainda se divisa a fusão recente de duas das maiores editoras do país, a Companhia das Letras e a Objetiva, e a falência da Cosac Naify, as grandes casas publicadoras se tornaram cada vez mais vinculadas a matrizes estrangeiras. Correndo por fora, editoras menores têm se apresentado como alternativa com livros de projeto gráfico bem cuidado, edições em tiragens limitadas, títulos interessantes e trabalho quase artesanal de produção e edição.
Esse tipo de editora também surgiu por aqui, mas por vezes elas patinam em um país do tamanho do Brasil, com um mercado centralizado e cada vez mais dependente de grandes redes de livrarias que competem de modo agressivo. A distância dos grandes centros torna ainda mais difícil a comercialização de livros pelas editoras gaúchas. Rodrigo Rosp, da Dublinense, casa responsável por lançar nos últimos anos novos autores como Carina Luft, Gustavo Machado e Ricardo Silveira, explica que há algum tempo as grandes redes livreiras estão centralizando seus escritórios em São Paulo ou Rio de Janeiro, diminuindo a autonomia para as filiais locais fazerem suas próprias escolhas na montagem do acervo:
– Tudo o que vendemos para as grandes redes precisa agora ir para o centro do país e depois voltar para cá. Quem está no centro às vezes não consegue julgar o que tem potencial para circular bem aqui. Com isso, alguns livros que tinham uma boa circulação há alguns anos no Estado não conseguiriam o mesmo resultado hoje.
Seja por conta da distância das maiores capitais ou devido ao momento de recessão econômica, os editores têm sido cautelosos, adiando ou até mesmo cancelando muitos lançamentos previstos. Marco Cena é um deles. Neste ano, a BesouroBox deve colocar no mercado 13 livros, o que representa metade de seu plano inicial.
– O curioso é que não observo uma vontade menor do público em ler. Essa me parece uma retração causada por conta da centralização das grandes redes livreiras. Estamos muito dependentes desses grupos. O mercado editorial gaúcho precisa se unir para pensar soluções que sejam positivas para todos os editores. De outro modo, será muito difícil superar essa fase – avalia Marco Cena.
Tito Montenegro, editor da Arquipélago Editorial, é outro que relata correções de curso ao longo do ano motivadas pela crise, do enxugamento do cronograma até a diminuição das tiragens:
– Por um lado, houve a suspensão das compras do governo federal, por outro, as vendas dos livros em livrarias também caíram. Tínhamos o planejamento de lançar 10 a 12 títulos em 2016, mas vamos terminar o ano com sete. Outro reflexo foi a redução das tiragens. Agora, é comum fazer uma tiragem inicial de mil exemplares, e não 2 mil ou 3 mil como antes. Se for preciso, se a recepção ao livro for boa, aí sim imprimimos uma tiragem maior. Ou vamos reimprimindo de mil em mil, digamos.
Mesmo a L&PM, maior editora do Estado e a única ainda com abrangência nacional, precisou ajustar prioridades devido a uma estagnação provocada pelo atual quadro econômico.
– Com a crise, não chegamos a encolher, mas estagnamos, o que até considero uma vitória, porque quando não tem crescimento, tem de ficar onde está. A nossa coleção de bolso tem 1,2 mil títulos, e permanentemente 400 estão sempre esgotados ou por esgotar. Aí decidimos não lançar muitos títulos novos para reeditar os que já temos. Os lançamentos que faríamos de forma quantitativa seriam em cima de um crescimento previsto de 12%. Como não tivemos esse crescimento, precisamos focar nas reedições, porque Totem e tabu, do Freud, por exemplo, na série pocket, é adotado lá no Rio Grande do Norte, e alguns brasileiros a gente sempre tem de manter na livraria, como Millôr Fernandes, Moacyr Scliar, Affonso Romano de Santanna, David Coimbra, Martha Medeiros – conta o publisher Ivan Pinheiro Machado.
São todos autores com um público já conquistado, o que expõe outro efeito colateral da crise que atinge o mercado literário. Com a necessidade de diminuir o número de lançamentos e com a redução das compras pelo Estado, as editoras acabam preenchendo sua programação com os nomes que já têm uma trajetória e melhor chance de retorno. Nesse quadro, o setor que mais sofre é o da prospecção de novos autores, e a peneira para chegar à publicação ficou mais complexa.
– Um autor estreante tem menos chance de ser publicado agora. No caso dos livros de ensaio, temas muito restritos também tendem a ser postergados. Cada título é avaliado individualmente. Eu diria que tem os seguintes pontos: o tema é amplo o suficiente para que tenha, digamos, mil interessados pelo livro?; se o tema for interessante para um público amplo, será que já não existem muitos outros livros a respeito?; se existirem, por que esse livro interessaria a esse público?; o autor é conhecido/reconhecido o suficiente para ter mil interessados pelo livro dele? – enumera Tito Montenegro.
Com sete anos de história, a Dublinense tem equilibrado a publicação de potenciais sucessos de público, como os livros de crônicas do músico Lucas Silveira, da Fresno, com títulos que angariam o respeito da crítica especializada, como os recentes Ruína y leveza (pelo selo Não), de Julia Dantas, e Longe das aldeias(pelo Terceiro Selo), de Robertson Frizero, ambos indicados neste ano ao prestigiado Prêmio São Paulo de Literatura. No entanto, livros com esse segundo perfil estão cada vez mais difíceis de alcançar os leitores, segundo Rosp:
– Além da dificuldade que representa estar longe dos principais centros comerciais do país, vejo que há uma tendência cada vez menor de que as livrarias adquiram livros legais, mas que não têm potencial de grandes vendas logo de cara. Está muito difícil para quem faz um trabalho bacana, mas não é candidato a best-seller.
Uma alternativa para esse tipo de funil que, bem ou mal, se repete há décadas na cadeia do livro poderia ser o suporte digital. Divulgada no meio deste ano, a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) sob encomenda da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), registrou em 2015 o terceiro ano consecutivo de crescimento desse tipo de publicação. Mas os números, analisados com cautela, mostram que na verdade o e-book, hoje parte irrevogável da paisagem cultural, tem vendido só um pouco mais – com faturamento bem maior.
Em 2015, em todo o Brasil, 189 editoras venderam 1.264.517 e-books, obtendo um faturamento deR$ 20,4 milhões. A quantidade de exemplares vendidos foi apenas 4,2% superior em relação ao ano passado, mas o faturamento superou em 21% o valor apurado em 2014 (R$ 16,7 milhões). Isso porque o preço médio do livro eletrônico subiu de R$ 13,84 para R$ 16,16, e não porque os compradores migraram do impresso para o digital.
– Sentimos que a venda de e-books vem aumentando. Hoje representa uns 5% do faturamento da editora. Em 2015, foi 3%. Ainda é pouco, mas acredito que já em 2017 será representativo. Talvez perto de 10%. Mas ninguém mais fala em substituir o papel. Mesmo nos mercados maduros e altamente tecnológicos, como os EUA, o e-book chegou a 25% do mercado e agora está estagnado ou caindo – diz Tito Montenegro.
Com a economia de freio puxado e as compras pelo governo em baixa, a maioria dos indicadores está em retração, e a redução das compras oficiais já ameaça piorar esse panorama. Como lembra Pinheiro Machado, o mercado editorial sempre será profundamente afetado pelo contexto:
– Os juros criam problemas, e quem não tem capital de giro tem de buscar recurso. O crédito é difícil. Se fosse em outra época, a gente estaria usando o capital do mercado financeiro e crescendo. Hoje não dá, não dá para pegar dinheiro em banco.
Novos autores e pequenas editoras têm encontrado um caminho alternativo para circular e angariar leitores. Nos últimos anos, surgiram feiras independentes, principalmente de quadrinhos e artes gráficas. O mais conhecido desses eventos no Estado é a Parada Gráfica, que chegou à quarta edição em 2016. Há mais exemplos, como as mensais Osso, no bar Ocidente, e Papelera, em diferentes endereços. E a lista não para de crescer. Em 15 de outubro, a Galeria Hipotética realizou a primeira edição da Hipoteticon, com bate-papos e estandes de editoras locais, entre elas as jovens Argonautas (focada em literatura fantástica), Avec, Figura e Stout Clube (as três ligadas a quadrinhos).
Essas feiras buscam inspiração e se relacionam com eventos semelhantes de outras capitais, como a Feira Plana, de São Paulo. São encontros em que editores, artistas e escritores vendem trabalhos diretamente ao público, com tiragens pequenas, muitas vezes numeradas.
– Um dos problemas para pequenos editores é chegar ao público. As distribuidoras e livrarias ficam com a maior parte dos ganhos, o que não ocorre nos eventos. Para uma grande editora, vender uma tiragem de mil exemplares de uma HQ não é interessante. Mas, para um editor pequeno, com um estrutura enxuta, circular pelas feiras e vender mil unidades já é um bom resultado, que o possibilita continuar – explica Fabiano Denardin, da organização da Hipoteticon.
Muitos desses editores menores são artistas que querem ver seu trabalho impresso ou materializar livros de amigos e edições estrangeiras que não chegaram ao Brasil. Ou seja, o lucro não é o primeiro objetivo. Mas pode dar as caras. Pelo menos foi assim com o publicitário Ricardo Rodrigues. Escritor desde a adolescência, começou a imprimir seus contos e vender em feiras no início deste ano, usando ilustrações, carimbos e costura manual – tudo feito artesanalmente, pelo próprio autor. As tiragens de seu selo, o Experimentos Impressos, são pequenas, entre 10 e 30 exemplares, mas têm feito sucesso.
– Divido meu tempo entre a Experimentos Impressos e meu trabalho como produtor de conteúdo. Consegui me encaixar nas feiras, e o projeto foi tomando uma dimensão que não imaginava. Hoje, dedico cada vez mais tempo a ele. Meu próximo passo é publicar textos de outras pessoas. É um caminho viável – avalia Rodrigues.
Além do espírito de faça você mesmo dos editores independentes, outra iniciativa propõe a retomada de um modelo doméstico em escala industrial. A Tag, um clube de livros por assinatura, tem demonstrado que há alternativas para chegar aos leitores de todo o Brasil sem depender de grandes livrarias. Com dois anos de atuação, conta com 11 mil assinantes de vários Estados. Mensalmente, cada um deles recebe em casa uma caixa com um livro e um suplemento sobre a obra e seu autor. Nenhum dos associados sabe o que receberá, mantendo um clima de surpresa, mas a qualidade dos títulos é assegurada por uma boa curadoria – a escolha é de um escritor ou intelectual reconhecido, como Heloisa Seixas, Luis Fernando Verissimo e Cíntia Moscovich.
– Não tiramos clientes das livrarias. Quem costuma comprar livros não perde o hábito de comprá-los por fazer parte de clube. Mas conseguimos atrair também um público que não tem hábito de leitura ou que o perdeu há anos. São pessoas que sabem que receberão livros bem indicados. Além disso, o clima de surpresa é um fator que estimula os associados – conta Tomás Susin, um dos criadores do projeto.
A Tag já tem até mesmo pautado editoras locais. Por indicação do escritor Luiz Ruffato, o clube encomendou à Dublinense uma luxuosa edição do clássico O vermelho e o negro, de Stendhal. Foi o primeiro livro a ser impresso sob encomenda pelo clube, exclusivamente para seus associados. Na próxima caixa, mais uma obra ganhará nova edição, a partir de indicação do filósofo britânico John Gray – o título, como de costume, é ainda uma surpresa. Rodrigo Rosp comenta:
– Vivemos um momento em que novas ideias precisam ser criadas para a literatura. A Tag repete de algum modo o modelo do Círculo do Livro, mas com características próprias. Há espaço para mais iniciativas como essa em nosso cenário. Quem quer permanecer no mercado editorial precisa criá-las.
A situação do livro no Brasil
> De 2014 para 2015, o faturamento com a venda de livros caiu 3,27%. O número de exemplares vendidos no mesmo período sofreu queda ainda maior, de 435.690.157 em 2014 para 389.274.495 (redução de 10,65%)
> O ano registrou queda na produção de exemplares em todas as categorias. Os didáticos produziram 12,8% a menos em número de títulos. As obras gerais, que incluem literatura, caíram 20,9%. Os livros religiosos decresceram 8,7% e os científicos e técnicos, 6,7%
> A participação das livrarias como canais de comercialização aumentou de 49,85% em 2014 para 51,30% em 2015.
Fonte: Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro 2015, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) sob encomenda da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL)