A certa altura de Krakatoa, romance de Veronica Stigger que acaba de chegar às livrarias, a narradora — também uma escritora — diz que o livro em que está trabalhando seria "sobre vulcões e fantasmas". Longe de encerrar um significado definitivo, esse exercício de metalinguagem abre possibilidades de interpretação. Transitando entre realidade e ficção, e combinando gêneros literários (prosa, poesia, teatro), como já havia feito em narrativas anteriores, a escritora porto-alegrense radicada em São Paulo convoca o leitor para participar ativamente:
— Penso não apenas este, mas qualquer livro meu, como uma espécie de tabuleiro, no qual o escritor dispõe algumas peças, convidando o leitor para que tome parte no jogo. Parte do desafio, porém, é descobrir, ou inventar, as regras do jogo, que nunca estão dadas completamente de antemão. Assim, o leitor, ao assumir essa tarefa, se torna o principal agente de tal jogo: é ele quem faz o livro afinal.
Krakatoa é dividido em duas partes. A primeira consiste em narrativas curtas que dão voz a diferentes personagens, humanos ou não, que precisam ser deduzidos pelo leitor. O tempo, aqui, é indefinido, como nas narrativas míticas. É como se todos os elementos da natureza pudessem falar: ser humano, carvão, água, gelo, fogo, sol e muitos vulcões. É difícil não pensar nos efeitos das mudanças climáticas que têm acometido o Brasil e o mundo.
— Esta é uma leitura possível, claro, diria até que uma leitura quase inevitável diante dos últimos acontecimentos. Mas, pelo menos no modo como eu vejo o livro, há uma noção um pouco mais ampla que atravessa a narrativa e que encontrou na atividade dos vulcões uma imagem muito concreta: a noção de que a Terra, não só naquilo que habita a sua superfície, como humanos, animais, vegetais e fungos, mas mesmo nas suas instâncias mais fundas e supostamente inanimadas, é coisa viva, que ela é a grande protagonista de nossa História, e de nossas histórias e estórias — observa a autora.
Ilha devastada
Contrastando com a primeira metade do romance, a segunda traz registros de jornais sobre a erupção do vulcão Krakatoa em 1883, uma das mais violentas da história, que fez desaparecer uma ilha na região da Indonésia. Estima-se que cerca de 36 mil pessoas tenham morrido em decorrência dos tsunamis desencadeados. Daí nasceu, em 1927, outro vulcão, o Anak Krakatoa, o "filho" do Krakatoa.
Os textos jornalísticos são alternados com relatos de uma escritora sobre uma viagem a trabalho à Indonésia em 2017, onde esteve com personagens referidos pelo primeiro nome: Hugo, Carlos e Victor. O leitor mais atento ou familiarizado com a obra de Veronica poderá identificar pontos de contato entre a narradora e a autora “de verdade”. Faz parte do jogo de tabuleiro da invenção.
— Não acredito em autoficção. Para mim, a partir do momento em que há literatura, o nome é ficção. O "eu", em um texto literário, não existe, a não ser como diferença de si: nunca coincide com o eu empírico do autor, por mais que insista nessa coincidência. Dito isso, para o escritor, nada é mais divertido do que mexer nesse vespeiro que é a tênue e complexa relação entre realidade/ficção, verdade/mentira.
O que vulcões e fantasmas têm em comum, explica ela, é que ambos apontam para “o que existe para além do fim, o que está vivo mesmo quando parece definitivamente morto”. Um dos “fantasmas” do livro é o personagem chamado de Victor, ponto de contato declarado entre realidade e ficção. Veronica de fato participou de um evento literário na Indonésia onde esteve o escritor carioca Victor Heringer, que morreu pouco depois, em 2018, aos 29 anos, deixando, no entanto, uma obra perene.
— Krakatoa é também uma homenagem ao Victor Heringer, um escritor talentossíssimo e muito generoso, que já havia conquistado seu lugar na literatura brasileira contemporânea quando nos deixou. Sua morte prematura foi um choque e um trauma para todos que o admirávamos como escritor e que gostávamos dele como pessoa.
"Krakatoa", de Veronica Stigger
- Editora Todavia
- 176 páginas
- R$ 74,90 o livro impresso e R$ 59,90 o e-book