Porto Alegre é um dos principais polos criativos da literatura brasileira, mas a grande novidade literária da cidade, prestes a conquistar o cenário nacional, teve sua formação à margem do circuito estabelecido na Capital.
José Falero, 33 anos, deve lançar até novembro seu primeiro romance. Editado pela Todavia, Os Supridores chega precedido das críticas elogiosas a Vila Sapo, livro de contos que documenta a linguagem e o cotidiano da comunidade em que cresceu, na Lomba do Pinheiro.
— Acho muito legal quando meu livro é bem recebido pelo circuito literário. Mas fico ainda mais feliz quando vejo pessoas da vila descobrindo e gostando. Um amigo disse uma vez: “O Falero sentou e escreveu o livro que qualquer um de nós poderia escrever”. Para mim, esse é o maior dos elogios — considera o autor.
Apesar da realidade que inunda seus textos, a entrada de Falero nesse universo se deu por meio da literatura fantástica. Por volta dos 20 anos, ele foi desafiado pela irmã a realizar um feito inédito na sua vida até então: ler um livro inteiro.
— Se dependesse das instituições formais, eu jamais me tornaria um leitor. Minha irmã me falava para ler, mas eu não dava importância. Um dia ela me disse que minha opinião sobre um assunto não valia nada, pois eu nunca tinha lido um livro. Fiquei com aquilo na cabeça. Peguei um livro emprestado. Era sobre lobisomens. E nunca mais parei de ler — conta.
Falero se tornou um leitor compulsivo. Sem dinheiro, vasculhava as casas de amigos e parentes em busca de novas leituras. Geralmente encontrava romances antigos de crime e mistério, que devorava com rapidez. Na falta de novidades, até os livros didáticos se tornaram alvo:
— O exercício da leitura em si me dá muito prazer. Lembro nitidamente que, quando descobri a leitura, comecei a me perguntar como algo tão maravilhoso estava ao meu alcance e eu ainda não tinha acessado. E também quantas coisas maravilhosas ainda estava por descobrir.
Falero procurou estudar que mecanismo era aquele que o fascinava. Passou a ler sobre teoria literária e gramática. E a criar — muitas vezes, depois de jornadas extenuantes como servente de pedreiro, debruçava-se por horas a escrever.
— Sou autodidata. Escrevia e jogava fora. Sabia que meu texto não estava bom, mas não sabia como melhorar. Então praticava. Passava oito horas por dia escrevendo. Até que, um dia, escrevi um texto e pensei: “Este está bom, vale a pena guardar” — lembra Falero.
Com o tempo, o escritor se tornou mais seletivo nas leituras. Autores do cânone nacional e internacional passavam a frequentar suas estantes na medida em que se tornava possível comprar mais livros. Como não encontrava sua realidade representada nessas leituras, demorou até se dar conta de que podia escrever sobre a Vila Sapo. Nas redes sociais, onde costumava postar seus textos, compartilhou uma pequena história passada em um cenário distante da zona central da cidade. A postagem foi muito comentada e compartilhada – e acabou apontando um novo caminho para o trabalho do autor.
— As pessoas começaram a marcar amigos, e assim, de repente, conheci uma pá de gente igual a mim. Gente que já publicava há muito tempo, da chamada literatura marginal, e outros que ainda não haviam conseguido expor seu trabalho. Eu fazia parte de uma rede, mas ainda não sabia — conta Falero.
Vila Sapo, lançado em 2019, reúne contos sobre a realidade em que cresceu.
O livro foi publicado de modo independente — Falero precisou fazer um empréstimo para bancar a impressão.
— Tive receio de não conseguir pagar. Mas isso me impulsionou, comecei a levar o livro aos eventos, aos slams, e recebi apoio de muita gente — lembra o autor.
Elogiado pela crítica, chamou a atenção da Todavia. O romance que a editora lançará, na verdade, já estava pronto antes de Vila Sapo. A história trata de dois amigos que resolvem entrar para o tráfico na esperança de mudar de vida.
— Ofereci esse romance a muitas editoras, mas nenhuma topou publicar. As coisas mudam muito depois de a gente lançar o primeiro livro — avalia Falero.
O escritor aponta que o livro também chega em um momento em que o meio literário passou a valorizar mais as histórias relacionadas à periferia:
— As políticas afirmativas foram muito importantes nesse processo. A galera da periferia que passou a frequentar a universidade é responsável pela mudança de pauta no ambiente acadêmico. E isso passou a se refletir em toda a sociedade, que está discutindo agora racismo e machismo estrutural, por exemplo. Da mesma forma, o debate literário também se descentralizou um pouco.