
Em um intervalo de dois anos, o francês Christophe Chabouté passou de ilustre desconhecido para fenômeno de vendas no Brasil. Até agosto de 2017, o quadrinista — hoje com 52 anos de idade e 26 de carreira — só havia sido publicado uma vez no país, como desenhista de uma história curta (Pegadas na Areia) escrita por François Migeat, no número 22 da extinta versão nacional da revista Heavy Metal. Então, saiu pela Pipoca & Nanquim sua adaptação para Moby Dick, que se tornou um best-seller: foram quatro tiragens, vendendo quase 10 mil exemplares. Em maio de 2018, a mesma editora lançou Um Pedaço de Madeira e Aço, que, na tradição dos filmes corais da França, desenvolve uma série de episódios interdependentes ao redor de um banco de praça. Absolutamente mudo, esse quadrinho de 340 páginas também virou um sucesso, com duas impressões e cerca de 8 mil cópias. Em agosto passado, a Pipoca & Nanquim colocou no mercado Solitário, que, depois de uma primeira tiragem com 6 mil livros, em dezembro ganhará uma nova, com 3,5 mil. Très bien!
Solitário é, como as duas obras anteriores, uma exibição inconteste da maestria de Chabouté no jogo de claros e escuros e de seu domínio da narrativa visual. Novamente, o francês aposta no silêncio para contar uma história que se desenrola por 368 páginas — 264 delas sem diálogos nem onomatopeias. Aliás, chama a atenção o volume de trabalho do autor. Entre 1998 e 2014, ele publicou praticamente um livro por ano, alguns deles com centenas de páginas.
— No caso dessas três HQs editadas no Brasil, é um feito duplamente impressionante, pois, no mercado franco-belga, o habitual é que um artista desenhe de 50 a 60 páginas anualmente — comenta o português Pedro Bouça, tradutor de Moby Dick e Solitário e um especialista em quadrinhos europeus. — Mas são as três mais longas obras dele. O resto do material do Chabouté tem por norma uma contagem de páginas bem mais modesta, cento e tantas no máximo, com exceção de Purgatoire, que originalmente saiu em três volumes (leia mais sobre a tradução logo abaixo).
Com paciência, Chabouté vai jogando pistas que permitem ao leitor formar o quebra-cabeças narrativo. Os escassos diálogos entre dois pescadores em um barco dão informações sobre o protagonista, cujo rosto só aparece pela primeira vez na página 109. Trata-se do único morador de um farol, a quem, rotineiramente, ele leva provisões, sem que haja qualquer tipo de contato.
Em uma história que abre mão do texto, há muito simbolismo nas imagens. O farol é uma representação característica da solidão, e suas escadas em caracol sugerem tanto os labirintos da memória quanto os calabouços de uma prisão; o mar alude a mistério e, pela associação com o batismo, a renascimento; as gaivotas remetem a liberdade — aquilo que é negado ao peixinho no aquário, uma das raras companhias do personagem. A outra, ironicamente, é um surrado dicionário. Em uma HQ que aposta no poder da imagem, Chabouté reforça o poder da palavra, que às vezes é tudo o que temos e tudo de que precisamos para criar um mundo.

Um desafio para o tradutor
Português que morou no Brasil durante a infância, a adolescência e boa parte da juventude, engenheiro da computação por profissão, Pedro Bouça comenta a tradução de Solitário:

"A parte do dicionário foi a mais interessante para traduzir. Como cada verbete tem quase sempre trechos dos anteriores e posteriores visíveis (nem sempre legíveis!) e, obviamente, nem todos eles são os mesmos em francês e português, devido às diferenças nas línguas, eu usei como base um dicionário Aurélio antigo que eu tinha (que é tão icônico no Brasil quanto o Larousse que o protagonista parecia utilizar é na França), verificava nele se os verbetes anteriores e posteriores correspondiam (mais ou menos, não fui inflexível nisso) e tirava dele o texto dos referidos verbetes quando necessário. Quando ele omitia alguma palavra (é um dicionário antigo e de bolso, não é dos mais abrangentes), eu buscava em dicionários online. Um detalhe é que a Larousse é um dicionário enciclopédico, então tem partes de enciclopédia (nomes de lugares, pessoas famosas etc.). Essas não constam de dicionários comuns, então eu as traduzi mais ou menos de acordo com o que eu conseguia ler no original.
Obviamente, os trechos dos verbetes principais foram traduzidos diretamente. Precisei adaptar uma ou duas coisas que eram diferentes no francês, mas, felizmente, a língua é bem próxima do português. Os tradutores americanos é que devem ter sofrido horrores para traduzir algumas coisas! Nunca vi a edição em inglês para saber quais as soluções que eles utilizaram".