Para um jovem judeu até a primeira década dos anos 2000, Moacyr Scliar era uma espécie de baliza, uma referência a ser consultada em momentos de crise e incerteza. Não apenas sua obra apontava para essa função, como também ele mesmo pessoalmente. Sempre era hora de entrevistar o escritor que se transformou na consciência crítica da comunidade judaica e um mediador entre esta e a sociedade brasileira em geral. Afinal, eram indissociáveis o amor à tradição mosaica, que para ele tinha caráter sobretudo cultural e comunitário, e o senso de missão do intelectual público.
Na falta de Scliar, que nos deixou em 2011, o livro A Nossa Frágil Condição Humana oferece a oportunidade de conhecer ou revisitar suas opiniões acerca de temas que circundam o universo judaico como se o estivéssemos ouvindo em uma palestra ou uma roda informal de conversa – façanha da crônica como gênero literário. Com lançamento em Porto Alegre nesta quinta-feira (23/3), data em que são lembrados os 80 anos de nascimento do escritor, o volume é uma reunião de 68 textos publicados originalmente em Zero Hora entre 1977 e 2010, selecionados pela professora de Literatura da UFRGS Regina Zilberman (leia entrevista). Profunda estudiosa da obra de Scliar, Regina já havia organizado duas coletâneas de crônicas do narrador do Bom Fim, sempre pela Companhia das Letras: A Poesia das Coisas Simples (2012), sobre literatura e memória, e Território da Emoção (2013), acerca da relação entre medicina e literatura.
Regina Zilberman: "A crônica era o laboratório da linguagem de Moacyr Scliar"
Pesquisa identifica os livros mais importantes na trajetória do escritor
80 anos de nascimento serão comemorados com série de eventos
O lançamento de A Nossa Frágil Condição Humana integra uma ampla programação, ao longo deste ano, em homenagem aos 80 anos de nascimento do escritor que terá sua próxima etapa, no dia 30, com um simpósio sobre sua obra na USP. Despontam nas páginas do volume reflexões sobre a vida hebreia das últimas décadas mas também sobre momentos-chave de sua antiga história, que é a própria história do mundo judaico-cristão: a Inquisição, o estereótipo do judeu em Shakespeare, o caso Dreyfus, o judaísmo em Kafka, o iídiche, o Holocausto, o sionismo, a criação do Estado de Israel, a literatura sabra, os conflitos no Oriente Médio, o humor judaico e até Lenny Kravitz (que, ficamos sabendo, é filho de pai judeu).
Nesse percurso intelectual, o cronista desconstrói preconceitos, explicando a origem de imagens cooptadas pelo antissemitismo, como a do judeu usurário (que remonta ao lugar marginal relegado aos integrantes da coletividade na Idade Média), e criticando a resolução da ONU de 1975 que igualou sionismo a racismo, posição revogada em 1991. Sionismo, pontua Scliar, é nada mais do que a versão judaica dos nacionalismos do século 19, tão legítima quanto a aspiração dos palestinos por seu Estado, demanda esta que o autor considera “a conclusão lógica do processo de paz”.
Fundamentalistas e modernizadores
As conquistas e agruras de Israel em seu desafio de coexistir com os vizinhos árabes e, especificamente, palestinos ocupam a maior parte das crônicas (51 delas), evidenciando Scliar como um observador sensato e, ao mesmo tempo, afetivamente envolvido em um tema tão controverso como a política do Oriente Médio. Independente, não se furta de criticar o governo israelense ou os fundamentalistas do lado judaico. Para ele, não se trata simplesmente de um conflito entre árabes e israelenses. "A briga no Oriente Médio hoje se trava entre fundamentalistas e modernizadores", escreveu em 1995. Alternando momentos de otimismo e pessimismo, sua perspectiva presta testemunho dos descaminhos de um conflito que ainda não tem horizonte de solução ao alcance dos olhos.
Lidas em perspectiva, suas crônicas sintetizam o raro equilíbrio entre a experiência judaica vivida de dentro com o espírito crítico da observação externa. Por isso, a ausência de sua voz é sentida nesse tempo que exige tanto entendimento, com o recrudescimento do antissemitismo até mesmo em lugares historicamente amistosos aos judeus, como os Estados Unidos, constatação de que a história não se repete como farsa, mas como tragédia.
***
A NOSSA FRÁGIL CONDIÇÃO HUMANA
De Moacyr Scliar
Crônicas. Companhia das Letras, 216 páginas, R$ 49,90. Cotação: 4 de 5.
Lançamento nesta quinta (23/3), às 19h30min, na Livraria Cultura do Bourbon Shopping Country (Túlio de Rose, 80), em Porto Alegre.
A abertura será de Cláudia Laitano, com leitura de crônicas pela atriz Mirna Spritzer e mesa-redonda com Regina Zilberman (organizadora do livro), a escritora Cíntia Moscovich e Mirna.
***
CRÔNICAS NA INTERNET
Zero Hora presta sua homenagem disponibilizando 80 colunas de Scliar, postadas sempre às quintas-feiras, sobre três temas: o bairro Bom Fim, a Medicina e a Literatura. A seleção é da jornalista Cláudia Laitano. Os textos podem ser acessados em bit.ly/scliar80anos.
***
PROGRAMAÇÃO DO ANO
Veja as atividades dos 80 anos de nascimento do ecritor
30 de março
Homenagem na USP
Simpósio coordenado pela professora Berta Waldman, com a presença de Judith Scliar e Regina Zilberman.
18 de abril
Eu Leio Scliar
Evento realizado pelo Instituto Estadual do Livro (IEL) em que escritores lerão e comentarão trechos de livros de Scliar. Às 19h, na Sala da Música do Multipalco Theatro São Pedro. Entrada franca.
26 de maio
Os Quatro Fantásticos e os Anos de Chumbo
Mesa-redonda com Ignácio de Loyola Brandão, Luis Fernando Verissimo, Zuenir Ventura e Antônio Torres sobre a ditadura militar. Haverá ambientação com painéis sobre Scliar e apresentação de documentário sobre ele.
Às 19h30min, no Teatro do Centro-Histórico Cultural da Santa Casa. Período de inscrições a ser divulgado.
23 de junho
Mostra de filmes 80 Anos Scliar
Exibição do longa Caminho dos Sonhos (1998), baseado no livro Um Sonho no Caroço do Abacate. Após, haverá debate com convidados.
Às 20h, na Cinemateca Capitólio. Entrada franca.
Agosto, data a definir
Mostra 80 Anos Scliar
Exibição do filme Sonhos Tropicais (2001). Às 20h, na Cinemateca Capitólio. Entrada franca.
16 a 22 de outubro
Exposição Scliar – A Medicina e o Escritor
Mostra sobre a vivência do autor na área da saúde pública. Saguão do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa.
20 e 21 de outubro
Apresentação teatral do grupo Os Mazel Tov
Trechos encenados de livros de Scliar com Mirna Spritzer, Zé Victor Castiel, Sérgio Lulkin e Cláudio Levitan. Às 21h, no Teatro do Centro-Histórico Cultural da Santa Casa. Ingressos a preços populares.
De 17 a 19 de novembro
Espetáculo A Mulher que Escreveu a Bíblia
Peça com a atriz Inês Viana, baseada na obra homônima.
Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 18h, no Theatro São Pedro.