João Gilberto Noll não morreu de causa natural, foi assassinado pela sociedade. Foi assassinado pela indigência cultural do Estado. Foi assassinado pelo total desprezo de nossas instituições pelos grandes artistas e narradores. Foi assassinado por ausência de incentivo e de apoio. Foi assassinado pelo orçamento imaginário da Secretaria Estadual de Cultura. Foi assassinado pela inanição do Instituto Estadual do Livro.
Em seu enterro na noite de quarta passada, na capela 9 do Cemitério João XXIII, havia menos de 50 pessoas para se despedir de um dos maiores escritores gaúchos de todos os tempos. Não apareceu prefeito ou governador, não apareceu ministro ou deputado federal, não apareceu presidente da Assembleia ou da Câmara Municipal. Os políticos não leem mais? É isto? É artigo de regimento interno?
Não se decretou luto no Estado. Não existiu nenhuma mobilização popular. Não teve cobertura da imprensa no velório.
Ele sequer aparece nos livros de nossas escolas como autor fundamental. Ele não é listado como autor obrigatório em nossos vestibulares. Ele não recebeu nenhuma honra nos últimos cinco anos – a mais recente foi como autor homenageado do Festipoa, em 2011. As novas gerações já não o conhecem, pois simplesmente não o estudam.
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Noll ficou mergulhado no ocaso, logo ele que se mantinha integralmente da literatura e dependia de convites para palestras, recitais e conferências. Sua única fonte vinha a ser uma oficina de escrita criativa esporádica.
Não me insulte alegando que ele morreu de velho. Ninguém é mais velho aos 70 anos. Morreu de solidão nesta cidade abandonada às bestas, onde os livros são uma seita para pouquíssimos e corajosos.
Rio Grande do Sul virou uma Sibéria para os criadores, um exílio forçado. Ama-se esta terra platonicamente.
Não parecia que perdíamos um de nossos mitos da literatura, da estatura de um Mario Quintana, de um Caio Fernando Abreu e de um Moacyr Scliar.
Foi um enterro simples, caseiro, envolvido pelos familiares e amigos mais próximos, com apenas três coroas de flores enviadas para ornar a cabeceira do caixão. Não teve fila para se aproximar do corpo e abençoar a sua partida. Então, não me diga que ele morreu de morte natural. Foi assassinado pela indiferença. Pelo desprezo. Pela desinformação. Pela tristeza e pelo desgosto.
Como o nosso maior ganhador de Prêmio Jabuti, o mais prestigiado do país, vencedor de cinco edições (1981, 1994, 1997, 2004 e 2005), vivia na total clandestinidade em Porto Alegre? Como permitimos a sua desaparição pública?
Ele não ganhou nenhuma alta condecoração em vida das autoridades no RS (a exceção foi o Fato Literário em 2009, iniciativa da RBS). Não foi patrono da Feira do Livro. Não é nome de biblioteca, dificilmente servirá para batizar alguma Casa de Cultura. Estamos vendendo o nosso patrimônio e, pelo jeito, não sobrará entidade nenhuma para ser nomeada. Como abandonamos à míngua os nossos mestres?
Não venha com o atenuante de que a sua escrita era difícil, é tão difícil quanto o fluxo de consciência de Clarice Lispector que não para de crescer em vendas e ser saudada no Exterior (The Complete Stories entrou na lista dos cem melhores livros de 2015 feita pelo jornal americano The New York Times). Sua obra – dezoito livros – continua sendo publicada pela Record. Tampouco é por carência de circulação.
Como deixamos de lado um de nossos romancistas mais adaptados ao cinema, com versões conhecidas nas telas de Harmada, Hotel Atlântico e do conto Alguma Coisa Urgentemente?
Como as mais prestigiadas universidades estrangeiras, de Iowa e King's College, lhe pagavam para vê-lo produzindo como escritor-residente, e jamais oferecemos condições para ele desenvolver a sua ficção na capital gaúcha, logo ele que residia inteiramente aqui e retratava Porto Alegre em seus livros?
Como ele era convidado a dar aula em Berkeley, nos EUA, na cátedra de Literatura e Cultura Brasileira, e nunca fora convidado para lecionar nas universidades gaúchas, logo ele formado em Letras pela UFRGS?
Como não desfrutava de espaço fixo no rádio e na TV, ele que já foi influente colunista da Folha de S. Paulo de 1998 a 2001?
Como menosprezamos alguém que renovou a escrita e enfrentou a supremacia do regionalismo, que fundou uma escrita urbana, feita da procura nômade da felicidade e de andarilhos que apenas encontravam pátria em seu corpo?
O descaso não pode ser resultado da falta de atualidade da obra de Noll, porque ele era absolutamente pós-moderno e abordava temáticas do momento como homoerotismo, inadequação social e tolerância às minorias.
Como não zelamos por uma carreira vitoriosa de 37 anos, acostumada a projetar o Rio Grande do Sul no cenário internacional?
Ele deveria ter sido lembrado, festejado, paparicado, cuidado, mimado, protegido, acalentado, amado. Assim como Pernambuco fez com Ariano Suassuna antes e depois de sua morte. Mas não aconteceu nada.
João Gilberto Noll morreu do nosso completo nada. Quem será a próxima vítima? Quem?