A exposição Simões Lopes Neto – Onde não chega o olhar prossegue o pensamento será aberta nesta terça-feira (18/10) no Santander Cultural, em Porto Alegre. Leia, abaixo, entrevista concedida por e-mail pelo professor de Literatura Brasileira da UFRGS, Luís Augusto Fischer, sobre a obra do autor.
Em 1998, escreveste que "quase nenhum" teve a ousadia de situar Simões no primeiro plano do conto brasileiro, lugar "que lhe é de direito". Hoje ele já está situado?
Pois é, de modo mais ou menos impreciso a gente sabe que grandes como Mário de Andrade, Erico Verissimo e Guimarães Rosa, ou um crítico como Antonio Candido, admiravam as virtudes de Simões Lopes Neto, mas essa opinião nunca foi assumida de peito aberto, nem por eles, nem pela crítica em geral. Ainda são exceções os que reconhecem claramente seu valor superior, especialmente fora do Rio Grande do Sul. Os motivos dessa situação, se fossem explicitados, por certo teriam a ver com o vocabulário muito marcado, ligado ao mundo rural sulino, mas também com o preconceito contra escritores tidos como menores, ou por serem "regionalistas", termo que só confunde, ou por não cantarem pela pauta modernista paulistana, hegemônica no Brasil como um todo e excludente como poucas outras matrizes mentais.
A linguagem empregada por ele apresenta dificuldades ao leitor brasileiro e mesmo ao gaúcho, já que seu vocabulário não é corrente. É um obstáculo ainda à sua popularização?
Sim, certamente. Um obstáculo real, que não se pode desconsiderar, mas também um obstáculo imaginário, que deve ser combatido. Poderia talvez fazer uma comparação com a selva de termos náuticos e baleeiros de Moby Dick, ou talvez de parte da obra de Joseph Conrad: nesses dois casos, ambos de língua inglesa, não parece que o leitor não afeito ao mundo náutico ou baleeiro erga a cabeça com suposta razão para dizer que eles são bons MAS escrevem com vocabulário restritivo. A mesma coisa se poderia evocar a propósito de outros escritores, aqueles ligados também a mundos rurais, como o José Hernández, autor do Martín Fierro, ou Guimarães Rosa.
O mundo retratado nos contos de Simões também não existe mais, assim como sua linguagem. Como vês a relação entre ficção e história na obra dele?
Um dos grande méritos de Simões Lopes Neto é justamente ter intuído um modo excelente de costurar história e ficção. Começa com a figura de Blau Nunes, que no livro de 1912 é dado como tendo quase noventa anos e como um sobrevivente de momentos históricos decisivos na história brasileira aqui no Sul, como a batalha do Passo do Rosário, a dita guerra dos Farrapos, ou a guerra do Paraguai, eventos a respeito dos quais ele conta experiências pessoais que são encharcadas de história, por ângulo particular, ancorado na vida de um homem simples, e não de um poderoso. Segundo, mesmo em contos e lendas em que a história não aparece em seus momentos agudos, como são as guerras, Simões Lopes Neto teve a correta perspectiva de flagrar movimentos e horizontes lentos, teutônicos, mas fortemente históricos, como a existência objetiva da fronteira (com o contrabando correlato), como a dispersão ocorrida após a destruição das Missões, como a escravidão no mundo da estância. De todos esses elementos ele fez uma poderosa narrativa ficcional.
Escreveste que a ficção do Simões é chamada "nem sempre com justiça" de regionalista. O regionalismo é um termo restrito demais para rotular o autor? Existe outro termo ou devemos chamar simplesmente de "literatura"?
Em sentido elementar, o termo é nefasto porque sugere que haja duas literaturas, uma urbana (e melhor) e outra não urbana (e pior). Mas o que é exatamente regionalista? Aquele que fala do mundo rural ou todo aquele que vive na província, mesmo que seja na cidade – como é o caso da maior parte da obra de Erico Verissimo? E Dyonélio Machado? E Graciliano Ramos? E Guimarães Rosa? Por aí já se vê o tamanho da encrenca. O termo "regionalismo" deriva diretamente de uma visão urbanófila, que me parece hoje claramente em crise. Para o Brasil e os países do Novo Mundo, essa urbanofilia se acrescenta de outra camada de inconsistência analítica, desta vez ligada a uma visão de história que secundariza ou mesmo desconsidera o imenso papel do mundo não urbano, do mundo do sertão (o sertão seco do Nordeste brasileiro, mas também o sertão pródigo do Oeste e o imenso Planalto brasileiro, assim como o Pampa), papel este que a historiografia recente tem destacado como forte e mesmo como decisivo na história brasileira, desde a Colônia.
Quais novos aspectos da obra de Simões têm motivado os pesquisadores nos últimos anos? E quais aspectos ainda não foram tocados e merecem ser desbravados pelos estudiosos nos próximos tempos?
Estamos numa ótima leva em duas direções, creio: uma vertente tem se preocupado em editar ou reeditar sua obra de modo mais próprio, com maior cuidado filológico e historiográfico, longe das simplificações e das inacreditáveis parcialidades que se verificaram uma e duas gerações atrás; outra vertente se estende em comparações, muito promissoras, que colocam sua obra em cotejo com obras similares, no tempo ou no espaço, em busca de medir as soluções estéticas que Simões Lopes Neto encontrou, e que sempre foram muito interessantes e inovadoras. Tal é o caso do trabalho da Heloísa Netto, que tem feito um trabalho minucioso de cotejo entre a obra de cunho pedagógico e/ou para público infantil feita por Simões Lopes Neto com a de escritores brasileiros e italianos do mesmo tempo, em especial a obra de Edmondo de Amicis.
Que aspectos da obra e da poética de Simões são descortinados na coletânea de contos Inquéritos em contraste?
Essa pequena série de crônicas tem uma importância estratégica para a reconsideração do conjunto da obra de Simões Lopes Neto. Ele escreveu muito sobre cidade, a começar pela grande tarefa que foi a de conceber e escrever a Revista do primeiro centenário, um empreendimento sensacional de 1912, recentemente reeditada com grande cuidado por Luís Rubira e uma grande equipe, ou pela sensacional maneira como registrou a vida numa escola primária na obra Tera gaúccha – Histórias de infância. Mas até hoje, dada a relevância dos Contos gauchescos e das Lendas do sul e dada a tristemente confusa história editorial de sua obra, ainda hoje com material nunca reunido em livro, sempre fica parecendo que ele, homem cosmopolita não só porque viveu na progressista Pelotas de seu tempo mas também porque viveu a adolescência toda no Rio de Janeiro, teria ignorado o complexo mundo urbano. Os Inquéritos em contraste mostram que ele tinha grande interesse na vida urbana, mas também que na cidade manteve a atenção focada nos de baixo, nos derrotados, que mereceram de sua verve a mais atenciosa das energias, resultando em crônicas que são preciosas, pela reconstituição de todo aquele universo, inclusive na linguagem falada. Ao ler esses Inquéritos, é certo que sua imagem sairá maior, mais matizada e mais próxima da complexidade de sua obra.