Há muito tempo andamos todos nas ruas de um porto não muito alegre. Há 40 anos, na verdade. Desde 1º de outubro de 1983, data que marcou a estreia de Bailei na Curva, a peça responsável por tornar conhecidos os versos da canção Horizontes, parafraseada no início deste texto. A música, que foi composta por Flávio Bicca Rocha justamente para o espetáculo, acabou virando uma espécie de hino alternativo da capital do Rio Grande do Sul. Assim como Bailei na Curva, que não só virou um clássico obrigatório do teatro gaúcho como também se tornou uma das peças mais longevas e remontadas do teatro brasileiro.
Bailei na Curva volta aos palcos neste sábado (30), às 20h, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. A peça será apresentada também no domingo (1º), às 18h; nos dias 5, 6 e 7, às 20h; e no dia 8, às 18h (veja detalhes sobre ingressos ao final do texto). A temporada será dedicada a celebrar os 40 anos do espetáculo, mas toda estreia é como se fosse a primeira para o diretor Julio Conte, um dos idealizadores, roteiristas e também diretor do espetáculo em 1983.
— Todas as vezes em que estreamos uma temporada, eu pensei que não teria gente — diz Conte. — Até que as sessões começavam a lotar. Mas eu sei que na próxima temporada eu vou pensar isso de novo (risos). A cabeça da gente é muito louca. Acho que essa coisa de tu teres um público e de repente ele sumir é o fantasma de todo artista.
Peça foi um sucesso desde o início
Não parece ser um risco iminente. A prova está nos ingressos para a temporada atual, praticamente esgotados em todas as seis datas previstas, demonstrando que Bailei na Curva não se perdeu por aí, nem mesmo após 40 anos. O cenário, aliás, lembra o sucesso feito pelo espetáculo em suas temporadas iniciais, na década de 1980.
Bailei na Curva foi premiado no Açorianos de 1983 e levou verdadeiras multidões a teatros do Rio Grande do Sul e do Brasil nos anos seguintes. Naquela época, algumas sessões chegavam a ter filas em frente aos locais de apresentação e público sentado no chão, dada a lotação das cadeiras disponíveis. Era "coisa de louco", segundo Conte.
— Não há explicação para o que foram os primeiros anos da peça, eu nunca tinha visto algo daquele tipo. Mas nem a pessoa mais megalomaníaca do mundo poderia prever que ficaríamos 40 anos em cartaz — afirma o diretor.
Muitos podem ser os motivos que garantiram a longevidade de Bailei. O primeiro deles passa pela temática do espetáculo, que aborda a ditadura militar brasileira, mas não se restringe a isso. O roteiro construído a muitas mãos e organizado por Conte acompanha o crescimento de sete crianças durante os anos de chumbo, mesclando as fases históricas do período com as fases vividas por elas em suas vidas pessoais.
O tempo narrativo se inicia em 1º de abril de 1964, dia do golpe, e vai até o início da década de 1980, às vésperas da redemocratização. Nas três décadas abordadas em cena, Bailei na Curva resgata aspectos históricos e dá a dimensão do que foi o regime militar no Brasil, mas também mostra as descobertas dos personagens durante a adolescência, suas dúvidas e incertezas a respeito da vida adulta e a angústia de não saber o que esperar do país dali em diante.
A história é representativa do que, à época, sentiam os criadores da peça — Claudia Accurso, Flávio Bicca Rocha, Hermes Mancilha, Julio Conte, Lúcia Serpa, Marcia do Canto e Regina Goulart —, jovens que também cresceram em meio ao período político conturbado.
— A gente desejava dar um depoimento sobre o que vivemos e sentimos. Não queríamos fazer uma peça política rançosa ou ideológica. Queríamos fazer uma peça que narrasse a experiência das pessoas dentro daquelas circunstâncias — revela Conte. — Não esperávamos que o nosso depoimento fosse ter tanta repercussão assim, tampouco podíamos imaginar que estávamos falando em nome de tanta gente. Conseguimos tocar muitas pessoas porque essas questões estavam à flor da pele no Brasil inteiro.
Atualidade "inconveniente"
Bailei na Curva teve diferentes elencos ao longo das últimas quatro décadas — a formação atual conta com Ana Paula Schneider, Eduardo Mendonça, Catharina Conte, Guilherme Barcelos, Laura Leão, Leonardo Barison, Manoela Wunderlich e Saulo Aquino. O texto também foi sendo impactado pela chegada dos novos atores, que sempre agregaram sugestões ao roteiro, mas sem alterar a ideia original da peça.
Ao longo dos seus 40 anos, Bailei também ganhou diferentes significados. Era, em meados de 1980 e 1990, a produção que tocava na ferida aberta daquele Brasil recém saído da ditadura, imerso em esperanças e dúvidas. Na primeira década dos anos 2000, a peça teve caráter documental, situando as gerações mais novas na história do país. Foi por isso que também se tornou o xodó de professores de história e recebeu incontáveis turmas escolares em suas montagens Brasil afora — o que dá ao espetáculo, ainda, o mérito de ter ajudado a formar novos espectadores para o teatro brasileiro.
Mas, infelizmente, a obra parece ter deixado de ser sobre o passado. Nos últimos anos, que vêm sendo marcados pelo avanço do conservadorismo e por ataques diversos à democracia, a peça ganhou uma nova atualidade. O diretor não acha improvável que um jovem assista ao espetáculo hoje e tenha a mesma sensação daqueles que assistiram na década de 1980. E caso isso ocorra, não há nada para se celebrar.
— O Bailei não se atualizou como uma história, mas como uma possibilidade assustadora novamente — avalia Julio Conte. — Ao longo desses 40 anos, a peça veio avisando sobre isso. É como o fio de uma navalha: se não tomar cuidado, tu podes te cortar todo. Eu acho que o Bailei narra ao espectador uma história que, direta ou indiretamente, é a dele, enquanto avisa sobre um futuro que pode ser o dele também. Infelizmente.
Bailei na Curva - 40 Anos
- Neste sábado (30/9), às 20h, e domingo (1º/10), às 18h. Na semana que vem, de quinta (5/10) a sábado (7/10), às 20h, e domingo (8/10), às 18h.
- Theatro São Pedro (Praça Mal. Deodoro, s/nº), em Porto Alegre.
- Ingressos a partir de R$ 30, no site do Theatro São Pedro