Depois de 25 anos morando em São Paulo, onde trabalhou com artistas do calibre de Gerald Thomas, Fernanda Montenegro e Ney Latorraca, a atriz Nora Prado voltou a residir em Porto Alegre no final de 2016 e agora está com a agenda movimentada. Ao lado do marido, o ator e diretor Gabriel Guimard, trouxe a Cia. Megamini. Na semana passada, atuou em Latidos, novo espetáculo de Júlio Conte.
Filha dos artistas Zoravia Bettiol e Vasco Prado (1914 – 1998), Nora revela, a partir de hoje, sua faceta de diretora com a estreia da peça Lembranças no Lago Dourado, dentro da programação do Porto Verão Alegre. As sessões vão até quinta-feira, sempre às 20h, no Teatro do Sesc Centro.
Lembranças... exibe o reencontro de dois grandes amigos, Ramiro (Paulo Vicente) e Bernardo (Claudio Benevenga), em uma casa de repouso para idosos na Zona Sul da Capital. Cada um encara a situação de forma diferente: Bernardo se adaptou à nova realidade, ao contrário de Ramiro, um bon vivant de família de posses que foi internado pela sobrinha, Juliana, por ter um aneurisma cerebral sobre o qual ele mesmo não sabe.
Bernardo, por sua vez, é um professor aposentado que entrou em depressão após a morte da esposa, sua primeira namorada. Chegou ao asilo por sugestão de seu geriatra. Ciça Reckzigel completa o elenco, interpretando os diferentes papéis femininos do roteiro, que foi escrito em parceria entre a diretora e os três atores.
Nora explica que a primeira motivação não era abordar a velhice, mas criar uma comédia muda inspirada em O Gordo e o Magro. Depois do abandono da ideia porque “já havia o original, muito melhor”, a ambientação da casa de repouso surgiu durante um improviso dos atores. O tema da terceira idade veio a calhar em um momento no qual o futuro dos brasileiros está em jogo com as discussões sobre a reforma da Previdência.
– Tratar bem os velhos é uma condição de sobrevivência da nossa espécie e é nosso dever incluí-los e acolhê-los na fase mais delicada da vida. Aproveitar sua experiência, seu riquíssimo baú de histórias é um privilégio, e por isso o governo deveria propor políticas públicas de saúde, cultura e lazer para esse enorme contingente – defende Nora.
O espetáculo é uma oportunidade para prestigiar seu primeiro trabalho como diretora de teatro adulto, ofício ao qual não tem previsão de retornar:
– Não é uma função que eu almeje profundamente. Me sinto mais realizada como atriz e não sei se farei novas direções no futuro.
LEMBRANÇAS NO LAGO DOURADO
Desta terça-feira (6/2) a quinta (8/2), às 20h.
Teatro do Sesc Centro (Av. Alberto Bins, 665), em Porto Alegre.
Ingressos antecipados: R$ 30 (inteira), R$ 24 (sócios do Clube do Assinante e Banricompras), R$ 20 (idosos e estudantes) e R$ 20 (espetáculos infantis).
Ingressos na hora, no teatro: R$ 40 (inteira), R$ 32 (sócio do Clube do Assinante e Banricompras), R$ 20 (idosos e estudantes) e R$20 (espetáculos infantis).
Pontos de venda: site portoveraoalegre.com.br, terceiro andar do Praia de Belas Shopping (de segunda a sábado, das 10h às 22h, e domingos, das 13h às 19h), Casarão Verde no DC Shopping (de segunda a sexta, das 10h às 19h) e na bilheteria do teatro, duas horas antes das sessões. Outras informações pelo site portoveraoalegre.com.br e pela página facebook.com.br/pva2018.
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ENTREVISTA: "Não me considero uma diretora na acepção mais completa do termo", diz Nora Prado
Leia a seguir, na íntegra, a entrevista concedida pela diretora a GaúchaZH por e-mail
Sabemos que a população do Brasil está envelhecendo, mas paradoxalmente a velhice não é valorizada na sociedade – por exemplo, a sabedoria das pessoas mais velhas. Assim, o tema parece bastante atual, ainda mais que se debate a reforma da Previdência e a qualidade de vida na terceira idade. Como surgiu a ideia de criar uma peça sobre a velhice?
Na verdade, a ideia inicial não era esta. Quando o Paulo Vicente e o Claudio Benevenga me convidaram para dirigi-los, era sobre a ideia de O Gordo e o Magro numa comédia muda. Depois de pouco tempo, percebemos que aquilo era uma loucura, uma vez que já havia o original, muito melhor. Mas uma improvisação sobre ambos chegando num albergue vagabundo para dormir na mesma cama e com um cobertor fuleiro me deu a ideia de fazer dois amigos se reencontrando numa casa de repouso.
A partir daí, iniciamos uma série de improvisações sobre Ramiro (Paulo Vicente) e Bernardo (Claudio Benevenga) na casa de repouso Lago Dourado, em homenagem ao rio Guaíba, já que a instituição fictícia é localizada na Zona Sul de Porto Alegre. Numa linguagem realista, tudo foi se entrelaçando facilmente, e a entrada da Ciça Reckziegel nos papéis de sobrinha, atendente, gerente, namorada e empregada foi fundamental para que as cenas e o roteiro ganhassem em credibilidade e teatralidade.
A propósito do processo de envelhecimento no Brasil, noto um enorme contingente de idosos com diferentes percepções e habilidades para viver a terceira parte da existência. Alguns são muito ativos, praticam atividade física, têm amigos e desfrutam de uma intensa vida familiar e social, enquanto outros se entregam às limitações físicas e ao passado numa perspectiva mais saudosista e solitária. Enfim, cada um envelhece como pode, mas percebo que o avanço da medicina e os novos hábitos mais saudáveis praticados por muitos alongaram esta fase da vida de uma maneira muito mais positiva. Prova disso é a enorme quantidade de casas de repouso em atividade nos últimos anos.
Acredito que tratar bem os velhos é uma condição de sobrevivência da nossa espécie e é nosso dever incluí-los e acolhê-los na fase mais delicada da vida. Aproveitar sua experiência, seu riquíssimo baú de histórias é um privilégio, e por isso o governo deveria propor políticas públicas de saúde, cultura e lazer para esse enorme contingente. Naturalmente isso passa, também, por promover uma aposentadoria e sistema previdenciário dignos, e não uma esmola. Aliás, esse desmonte cruel que o Governo quer fazer com a Previdência demonstra total desrespeito e despreparo para lidar com a questão da velhice. Lamentável, pois a velhice contém os valores, a tradição oral da cultura e a experiência para o futuro.
Quem são esses personagens que estão em cena em Lembranças no Lago Dourado? Como foi a construção e a caracterização deles, uma vez que o roteiro foi uma colaboração entre os quatro artistas?
Ramiro é um típico "filhinho de papai" que arrendou as terras e o gado da família abastada, do Interior gaúcho, administrando o legado familiar com competência e criando uma sobrinha como se fosse filha. Ressente-se com Juliana, a sobrinha, pois não compreende como ela foi capaz de interná-lo num "asilo de velhos", como ele chama o Lago Dourado. Ressente-se por não ter feito uma carreira e algo mais significativo na vida. Um bon vivant solteirão que aproveitou bem a vida. Ele não sabe, mas tem um aneurisma cerebral que pode estourar a qualquer momento e, por essa razão, Juliana o internou.
Bernardo é um professor aposentado que casou com a primeira namorada, Emanuelle, por quem ambos foram apaixonados na juventude. Desde que se aposentou e a esposa faleceu, entrou em depressão, e o seu geriatra sugeriu que procurasse uma casa de repouso. Se adaptou muito bem ao novo cotidiano, ao contrário de Ramiro, que se queixa o tempo todo com saudades da sua antiga vida. Ciça Reckzigel interpreta as diversas mulheres com as quais eles se relacionam. Tanto as figuras do presente, como Juliana, Madrinha (atendente da casa de repouso), Dona Thelma (gerente da casa de repouso), Celeste (atual namorada de Bernardo) e Cleide (amiga de Ramiro), como Emanuelle, que foi a grande paixão deles, e como Neuza, a empregada de Ramiro no passado.
Fui compilando o texto ao longo das improvisações, sempre reescrevendo a partir das falas dos atores. A contribuição deles com o texto e roteiro na sua versão final foi estreita e sistemática. Optamos para enfatizar os aspectos de maior jovialidade física e emocional de Bernardo e sua melhor adaptação ao mundo moderno com o conservadorismo e a inadequação de Ramiro à nova realidade. Além disso, ele está mais velho, lento e pesado do ponto de vista físico. Cada um foi encontrando a mudança da voz e a energia física de acordo com os tempos que se alternam durante a peça. Era preciso diferenciar bem os velhos dos rapazes que se divertiam com as revistinhas de mulher pelada, os passeios na praça com o carro roubado do pai e a primeira ida ao drive-in na cidade do interior.
A senhora tem uma longa trajetória como atriz. A direção é uma função que pretende repetir mais nos próximos tempos?
Estou muito contente por dirigir meu primeiro espetáculo adulto ao lado de atores talentosos e criativos que se envolveram de corpo e alma, dando o melhor de si para a montagem. Temos muita afinidade estética e liberdade para criticar uns aos outros, claro, sempre com respeito e serenidade. Além disso, me cerquei de uma equipe igualmente competente e experiente para dar um tom levemente nostálgico, mas preservando o humor e poesia do espetáculo. Fiapo Barth assina a cenografia despojada, composta apenas por diversas cadeiras antigas de estilos e cores diferentes, sugerindo um depósito, aludindo ao que para muitos significa o asilo como um depósito de velhos. Os atores armam e desarmam os ambientes jogando apenas com as cadeiras.
A iluminação fica por conta de Anilton Souza e Mauricio Moura, e a trilha sonora foi composta por Everton Rodrigues, que captou muito bem o espírito do espetáculo, criando ambientações sonoras apropriadas para cada espaço e uma música-tema belíssima. O figurino de Rô Cortinhas veste cada um dos personagens revelando a sua própria identidade de modo sintético e poético. Acredito que há unidade formal e simplicidade para narrar essa crônica sobre a amizade, a velhice e a finitude da vida.
Depois de 25 anos morando em São Paulo, a senhora retornou a Porto Alegre no final de 2016. Como foi essa decisão e quais os seus planos para essa volta aos palcos gaúchos?
Morei 25 anos maravilhosos em são Paulo, que me acolheu com trabalho e experiências significativas no teatro. Pude trabalhar com atores e diretores formidáveis como Gerald Thomas, Oswaldo Gabrielle, Regina Galdino, Hugo Possolo, Luiz André Querubini, Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Ney Latorraca, Ludoval Campos, Luiz Damasceno e Gabriel Guimard, entre outros.
Casei e tive dois filhos com meu companheiro, o ator e diretor Gabriel Guimard, com quem fundei a Cia. Megamini e com quem dividi a cena em vários espetáculos infantojuvenis. Mas, com a crise que se intensificou em 2016, os trabalhos minguaram de maneira radical. Morávamos numa casa em Cotia, na grande São Paulo, e os custo de vida e o desgaste físico numa cidade de proporções desumanas foram decisivos para repensarmos o nosso estilo de vida. Além disso, tive uma depressão profunda e uma crise de pânico que me fez querer retornar às minhas raízes. Foi uma sábia decisão. Estamos felizes e muito bem adaptados à cidade, com mais tempo e melhor qualidade de vida. Em 2017, trabalhei muito mais que quando estava em São Paulo. Fizemos temporadas do nossos espetáculos, pude dirigir Lembranças no Lago Dourado e também participar de Latidos com a Catharina Conte e direção do Júlio Conte, ou seja, fiz só teatro. Um luxo!
Apesar de considerar esta experiência de direção muito bem-sucedida, prazerosa e divertida, não me considero uma diretora na acepção mais completa do termo. Não é uma função que eu almeje profundamente. Me sinto muito mais realizada como atriz e não sei se farei novas direções no futuro. Tenho mais desejo de me exercitar como atriz em novos projetos, sobre os quais não poso revelar agora. Mas adoro o Porto Verão Alegre e o considero um festival da maior importância para a vida cultual da cidade, assim como o Porto Alegre Em Cena. Vejo com entusiasmo o teatro gaúcho em seus expoentes criativos, diversos e potentes. Espero que o Estado e o município tenham e criem mais editais e políticas públicas com orçamentos significativos para honrar e financiar espetáculos à altura do nosso enorme potencial. Detalhe: só conseguimos montar o espetáculo graças a uma vaquinha virtual que arrecadou R$ 3 mil.