Para o Ói Nóis Aqui Traveiz, olhar para trás é uma forma de apurar os olhos ao momento presente. Por isso, os espetáculos do grupo gaúcho que completa 39 anos como um dos mais importantes do país frequentemente encenam releituras de mitos e personagens históricos: Medeia, Marighella, Cassandra, Antígona e muitos outros.
Agora é a vez de Caliban, figura de A Tempestade, de William Shakespeare (1564 – 1616), que nas últimas décadas atraiu a atenção de estudiosos interessados na desconstrução do estereótipo dos povos colonizados. Na trama da peça de 1611, Caliban e o espírito Ariel são dominados pelo duque Próspero quando este desembarca em uma ilha com a filha Miranda depois de ser traído pelo irmão Antonio, o qual lhe usurpou o ducado.
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Mas o espetáculo de teatro de rua que o Ói Nóis apresenta em pré-estreia deste domingo (12/3) a quinta-feira (16/3), em Porto Alegre, não é uma montagem de Shakespeare. É uma releitura de A Tempestade pelas lentes do dramaturgo e teórico brasileiro Augusto Boal (1931 – 2009), que escreveu em 1974 uma peça de mesmo título como resposta ao grande poeta inglês. Enquanto o texto de Shakespeare posiciona o colonizador no centro, o de Boal observa a trama pelos olhos do colonizado, muito inspirado por um célebre estudo sobre Caliban do poeta e ensaísta cubano Roberto Fernández Retamar (a quem Boal dedicou o texto).
O bom observador perceberá que há ainda outra camada de sutileza: o Ói Nóis criou sua própria visão sobre a releitura empreendida por Boal. A personagem Miranda, por exemplo, tem uma personalidade mais forte na montagem. Por isso, o título é singular: Caliban – A Tempestade de Augusto Boal. O atuador Paulo Flores, um dos fundadores do grupo, explica que o interesse pelo tema veio de uma possibilidade de metáfora com a tempestade do presente, em referência à guinada à direita no Brasil e em diferentes partes do globo:
– Tem a ver com o momento dramático, terrível e triste que vivemos no país. Entramos em contato com o texto quando começaram as manifestações pelo impeachment. O Boal escreveu a peça também em um momento de grande derrota para a democracia na América Latina, sob o impacto do golpe no Chile. É o que estamos sofrendo hoje novamente. Mas o sentimento de derrota traz a necessidade de resistir, como faz Caliban.
Embora o Ói Nóis há tempos prestigie o teatro de rua, a escolha do formato para o novo espetáculo tem um motivo claro. Diz respeito a uma necessidade de se dirigir ao maior número de espectadores possível em um momento de urgência. Com a palavra, a atuadora Tânia Farias, que em setembro será homenageada pelo festival Porto Alegre Em Cena com uma biografia na série Gaúchos Em Cena:
– Agora, mais do que nunca, é imprescindível que estejamos ocupando o espaço da rua. Vê no retrocesso que ocorre no Brasil em termos de legislação, os temas em que estamos regredindo, a privatização do espaço público. Tu não imaginas a burocracia que é levar um espetáculo para apresentar na rua. Em alguns lugares do Brasil, é preciso pagar para estar na praça.
A estreia oficial de Caliban será no dia 29 de março, em Campina Grande (PB), dentro do Circuito Nacional Sesc Palco Giratório, projeto com o qual circulará pelo país – com a deferência de grupo homenageado deste ano. O espetáculo foi viabilizado com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz e com o Rumos Itaú Cultural (pelo projeto Caliban – Apontamentos sobre o Teatro de Nuestra América), mas os tempos são nebulosos. Devido à crise que afeta o país e estanca o financiamento à cultura, o grupo ainda não conseguiu planejar a comemoração de seus 40 anos, que serão completados em março de 2018.
– Se sempre foi difícil, agora está muito mais difícil – resume Tânia.
CALIBAN – A TEMPESTADE DE AUGUSTO BOAL
Pré-estreia em Porto Alegre:
Domingo (12/3), às 16h, no Parque da Redenção.
Terça-feira (14/3), às 16h, na Praça da Alfândega.
Quinta-feira (16/3), às 16h, no Largo Glênio Peres.
Entrada franca
Desastre e advertência
Por Patricia Freitas
Pesquisadora e crítica teatral
A Tempestade, finalizada em junho de 1974 por Augusto Boal, é uma obra que deve ser compreendida em consonância com seu momento histórico. Considerada por seu autor como uma resposta ao clássico shakespeariano, a peça aborda os conflitos de uma América Latina sob domínio norte-americano e assolada por regimes ditatoriais.
Em entrevista a Charles Driskell, Boal afirmou que sua versão era exatamente o oposto do texto original. Tratava-se sobretudo de uma reescritura que pretendia refletir criticamente sobre o suposto caráter colonialista da obra de Shakespeare e conceder a função protagônica ao personagem Caliban, alegoria do latino-americano. Inspirado nos escritos do pensador cubano Roberto Retamar, Boal percorre processos históricos importantes na luta de classes em países periféricos, ressaltando o papel social de Próspero como perpetuador dos privilégios das classes dominantes e o de Caliban como principal contestador da ordem estabelecida. Já Ariel, figura originalmente metafísica, associa-se parodicamente ao não lugar do artista na sociedade – será por meio dele que Boal irá propor uma crítica a certa parcela da classe artística preocupada em manter o estado de coisas.
Encenado em 1981 pelo grupo Gente de Casa, o texto permaneceu inédito no Brasil. No entanto, sua potência atual reside em atestar, num momento em que o posicionamento político ganha impulso, a importância do ponto de contato entre arte e sociedade, entre desastre e advertência.