Rodado em Porto Alegre, em Novo Hamburgo e no Chile — o que inclui a Cordilheira dos Andes — e baseado em fatos reais, o longa gaúcho Ainda Somos os Mesmos chega aos cinemas nesta quinta-feira (26). O filme é dirigido por Paulo Nascimento (Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos e A Oeste do Fim do Mundo) e retrata um grupo de brasileiros que tenta escapar do exército chileno.
Ainda Somos os Mesmos se passa em 1973, logo após o golpe de Estado do general Augusto Pinochet, quando o militar tomou o poder do então governo socialista do presidente Salvador Allende. Em um momento de insegurança, os locais menos perigosos para estrangeiros no país eram as embaixadas.
Quem conduz o suspense político é Gabriel (Lucas Zaffari), estudante de Medicina que fugiu da ditadura brasileira três anos antes, encontrando proteção no Chile. Após sua companheira, Helena (Gabrielle Fleck), ser capturada pelos militares, ele consegue escapar do fuzilamento e encontra abrigo na Embaixada da Argentina, onde estão centenas de brasileiros precariamente acomodados.
Por lá, todos querem sobreviver e sair do país. Gabriel exerce aquilo que sabe de medicina, mas também, aos poucos, percebe que há opressores entre os perseguidos. Ele também conhece Clara (Carol Castro), uma economista ferida emocionalmente, que chega a se apegar a uma cadeira de rodinhas.
Conforme Nascimento, a personagem de Carol representa a loucura que tomou conta daquele ambiente, diante da pressão de pessoas que conviviam com a morte muito próxima e com cenas horríveis que tinham passado recentemente.
— Nós discutíamos até onde ia a loucura da Clara. Um personagem assim é muito perigoso porque o ator pode passar do ponto, mas, não, Carol achou o tom certo — destaca o diretor.
Em paralelo à situação da embaixada, há o pai de Gabriel, Fernando (Edson Celulari), que tenta desesperadamente articular um resgate do filho. Anos antes, ele havia utilizado sua rede de contatos para Gabriel escapar para o Chile.
Só que a história de Fernando é mais complexa: poderoso empresário do ramo calçadista, ele apoiou a ditadura brasileira, visando beneficiar seus negócios.
— Esse tipo de personagem nunca, ou quase nunca foi representado. Eu achei importante inserir no filme porque soube de casos de grandes empresários que apoiaram a ditadura veementemente e depois viram os casos de tortura chegando às suas próprias famílias. Era uma época muito complexa, como aliás é hoje, só que hoje se enxerga mais quem é quem — explica Nascimento.
Homenagem a Bona
Ainda Somos Os Mesmos tem como base os relatos reais de brasileiros, especialmente do advogado gaúcho e ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) João Carlos Bona Garcia. Naquele período, ele ficou 42 dias abrigado na Embaixada Argentina.
A história de Bona já havia sido abordada por Nascimento em outro filme, Em Teu Nome (2009). O projeto de Ainda Somos os Mesmos teve início após uma conversa entre os dois, em que o advogado relatou tudo o que havia acontecido o com ele dentro da Embaixada da Argentina. Para o diretor, a história era tão surreal que aquilo lhe despertou uma vontade imensa de imediatamente começar a escrever.
Nascimento conta que apresentou a ideia a TV Globo, para transformá-la em uma série que se chamaria Embaixada. A produção integraria o núcleo do diretor Marcos Paulo, porém ele morreu em 2012 e o projeto parou. Em 2018, o roteiro foi retomado no formato de longa-metragem.
Em todo o processo, Bona participou das leituras de roteiro e das adaptações feitas por Nascimento. Porém, ele morreu no dia 14 de março de 2021, aos 74 anos, vítima de covid-19.
Segundo o diretor, há um pouco de Bona e outros sobreviventes da ditadura em Gabriel — que, no filme, se caracteriza por ser idealista, íntegro e extremamente atencioso ao próximo. O personagem é uma homenagem a eles.
— Tenho profunda admiração por pessoas que conseguem passar por todos esses eventos horríveis e continuam sendo humanos, sensíveis, generosos, sem rancor. Que a gente aprenda com essas pessoas que foram jovens, que acreditavam, que apanharam, que perderam muito, e devem pensar muito se valeu a pena, mas estamos aqui. Talvez muito em função deles — diz.
Outras perguntas para Paulo Nascimento
O filme é baseado em relatos reais de brasileiros, entre eles o de João Carlos Bona Garcia, que contribuiu com o filme. Como você encarou a perda dele?
O Bona participou o tempo todo. Eu escrevia, mandava para ele, discutíamos, e quando veio a morte dele eu fiquei muito abalado, naturalmente, mas pela ironia da vida do cara ter passado tudo que passou e perder a vida para um negacionismo que poderia ter evitado sua morte. Ele estava quase na hora de fazer a vacina quando ficou doente. Isso foi muito cruel, como foi para muita gente, e eu só pensava nisso quando estava filmando. Desta vez, não poderia mostrar, como fiz no Em Teu Nome. Ele era muito crítico, principalmente sobre a produção, sempre achava que poderia ter mais um carro, um figurante, e eu explicava que cinema custa muito dinheiro. Tínhamos este nível de conversa, de tanto que ele entrava no projeto. Foi e está sendo ainda muito duro fazer esse filme sem ele. Também sem amigos que partiram do Em Teu Nome para cá. É como se esses dois filmes marcassem uma fase da vida. Tratei sobre o mesmo tema, histórias interligadas e um soco de realidade com falta de pessoas que partiram entre dois projetos.
Como foi rodar o filme em Novo Hamburgo?
Foi a semente de tudo, pois, sem o edital local (de financiamento), o filme não existiria. As cenas lá são superimportantes porque fizemos um mix surreal que só o cinema permite: Novo Hamburgo e Cordilheira dos Andes. Não vou contar para não dar spoiler, mas o público não percebe determinadas partes onde essas duas locações improváveis se misturam, e isso é a magia do cinema.
O filme traz no título um verso de Como Nossos Pais, canção composta por Belchior. Aliás, é também a canção tema do filme, em uma versão interpretada por Thedy Corrêa. Como essa música dialoga com o filme?
Essa canção é tradução de uma geração. Nosso título é quase uma sinopse, diz o que é o filme, e isso devemos à genialidade do Belchior. Quando conseguimos os direitos, eu corri para o Thedy porque só ouvia a voz dele, imaginariamente cantando essa canção. Para a minha sorte, ele aceitou na hora. A partir daí, o filme tinha uma alma que era a canção. É mais uma das coisas que me deixam muito triste por não ter conseguido mostrar ao Bona. Mas seguimos. A música está lá, lindamente interpretada pelo meu amigo.
No final, o filme sublinha um acontecimento recente da história do Brasil, a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Como Ainda Somos os Mesmos pode refletir ou dialogar com os dias de hoje?
A principal missão deste filme é a memória. Vivemos em um tempo em que a grande maioria dos jovens, quem vai tocar esse país, está em meio a um bombardeio de informações de redes sociais e, naturalmente, distante de uma história que parece não ter acontecido. Essa desinformação é, a meu ver, perigosíssima, porque a memória não é vingança, não é rancor; é educação. Somos um país, uma região, a América Latina que viveu ditaturas sangrentas. Jovens, como os que me refiro hoje, foram presos, torturados, na maioria das vezes sem nem entender o porquê. É preciso falar que existiu um mundo em que você simplesmente “sumia” por pensar diferente. É preciso lembrar que isso esteve e está muito próximo de todos. Não é ficção. Vivemos em um país que corre perigo civilizatório. Digo isso porque não se trata de política partidária, desse ou aquele, mas se trata de quem está do lado do ser humano e quem está do lado da barbárie. Só vamos ter isso claro conhecendo o que aconteceu logo ali atrás. Esses jovens da época hoje são senhores, estão vivos em grande parte e fizeram história. Fico muito feliz quando Walter Salles consegue uma divulgação como a que vem conseguindo com a história do Marcelo Rubens Paiva (o filme Ainda Estou Aqui). É algo como: “Vejam! Vocês têm história! Uma família foi destruída por uma ideologia louca que existe e está aí até hoje, bem perto de você. Não finja que não existe!”.
Salas e horários*
- Cinemark Barra 8 (13h45, 16h15, 18h50, 21h)
- Espaço Bourbon Country 3 (17h40, 21h)
- GNC Praia de Belas 5 (15h45, 17h50, 21h45)
- GNC Moinhos 1 (14h)
- GNC Moinhos 3 (16h20)
- GNC Moinhos 4 (18h45)
*De quinta-feira (26/9) a quarta (2/10)