Fernanda Young não era uma mulher linear. O caminho de sua vida era sinuoso, com curvas que direcionavam das mudanças de humor às de cabelo, passando também pelas artísticas. E é de se imaginar que um filme sobre uma mulher tortuosa como ela não se ancoraria em uma narrativa contínua. Portanto, é de forma igualmente sinuosa que o documentário Fernanda Young — Foge-me ao Controle apresenta todos os ziguezagues da escritora que morreu em 2019, aos 49 anos.
Uma das primeiras lições do filme, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (29), é que Fernanda Young, apesar de multiartista, preferia ser referenciada como escritora.
— Eu sabia que era escritora antes mesmo de ser alfabetizada — diz ela em trecho do documentário. — Faço outras coisas para suprir minhas necessidades financeiras e criativas — justifica.
Assim, o filme busca valorizar a obra literária de Fernanda Young, usando trechos de poemas, crônicas e romances escritos por ela para conduzir o espectador em um mergulho profundo pela vida de sua personagem principal. Ao longo dos 90 minutos de duração, nenhum terceiro é convocado para falar sobre a protagonista — como costuma ser comum em documentários. Somente ela, que sempre teve muito a dizer, fala de si mesma.
Para possibilitar isso, a diretora Susanna Lira costura uma verdadeira colcha de retalhos. O documentário entrelaça entrevistas de Young, performances artísticas, vídeos caseiros que revelam momentos íntimos dela e leituras de alguns de seus escritos — ora em sua própria voz, ora na voz de Maria Ribeiro, amiga que já a interpretou no teatro. Imagens de filmes clássicos do cinema experimental, dos quais Young era fã, também entram na miscelânea visual, bem como recortes de programas de sucesso roteirizados por ela, como Os Normais e Shippados.
Toda a trajetória artística, profissional e intelectual de Fernanda Young está contemplada no filme. Contudo, é nos recortes que abordam os aspectos da vida pessoal dela que o espectador pode ser tomado pela emoção.
É possível conhecer lados menos difundidos da escritora, como sua relação com os quatro filhos e a história de amor vivida com o marido, o roteirista Alexandre Machado, também seu parceiro profissional. Entram no cardápio de temas, ainda, a dislexia que a fez concluir o então Segundo Grau (hoje Ensino Médio) somente aos 23 anos, a depressão que a acompanhou por toda a vida e a asma grave que acabou por matá-la precocemente.
Funcionando como um complexo retrato da complexidade de Fernanda Young, o documentário ganhou prêmios de melhor montagem no festival internacional É Tudo Verdade e de crítica no Festival de Paraty. Quando chega ao fim, deixa uma certeza: Fernanda Young foi embora cedo demais, mas, como a própria costumava dizer, nasceu fadada à posteridade.
Para conhecer a obra de Fernanda Young
Fernanda Young tornou-se figura popular, principalmente, pelos roteiros e aparições na televisão. Ela fez parte da primeira formação do Saia Justa, do GNT, e criou, ao lado do marido, uma das séries de maior sucesso da TV Globo, Os Normais. Também publicou 15 livros, tanto de poesia quanto de prosa.
Abaixo, confira algumas das principais obras de Young:
Pós-F: Para Além do Masculino e do Feminino
Foi o último livro lançado por ela em vida e rendeu um Prêmio Jabuti na categoria crônica. Por meio de textos autobiográficos, ela se insere no debate sobre o que significa ser homem e ser mulher hoje e propõe a construção de um conceito em que todos os gêneros sejam abraçados. A obra foi publicada pela editora Leya.
Posso Pedir Perdão, Só não Posso Deixar de Pecar
Lançado de forma póstuma também pela editora Leya, foi o primeiro livro escrito por Fernanda Young, aos 17 anos. Antes de morrer, ela trabalhava na revisão do texto e planejava ampliar alguns pontos narrativos — o que acabou não acontecendo. Assim, a obra publicada preserva a versão original, revelando o despertar criativo de Young durante sua adolescência.
Tudo o que Você Não Soube
Misturando ficção e recortes autobiográficos da autora, o romance narra a história de uma mulher sem nome que escreve ao pai moribundo com quem não fala há anos. O livro é escrito em primeira pessoa e funciona como uma carta na qual a personagem deseja contar ao pai sobre a mulher que se tornou, ora buscando o afeto do progenitor, ora despejando nele a culpa por seus traumas. Foi publicado pela editora Ediouro.
A Mão Esquerda de Vênus
O livro reúne uma série de poemas por meio dos quais Young revela entendimentos múltiplos e complexos sobre o que é o amor. A inspiração vem de correspondências românticas trocadas pela mãe de uma amiga dela, encontradas acidentalmente por Young. Em seu interior, a obra também guarda desenhos, fotografias e anotações da autora. Foi publicada pela Globo Livros.