Por Gabriel Carneiro e Paulo Henrique Silva
Organizadores do livro “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais”
Zé do Caixão, você deve conhecer. É aquele dono de funerária com cartola, unhas enormes, que lança pragas em quem atravessa o seu caminho. Por muito tempo, virou sinônimo de cinema de horror no Brasil, por conta de obras-primas como À Meia Noite Levarei a Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). O sucesso, mais do que merecido, atravessou as nossas fronteiras, e o personagem chegou a ganhar o nome de Coffin Joe lá fora.
Por mais que seja uma referência fundamental no Brasil para o estudo do horror e do cinema fantástico como um todo, que compreende também a fantasia e a ficção científica, o personagem criado por José Mojica Marins é uma pequena parte de uma longa e rica trajetória. É difícil precisar quando essa história começou, talvez até impossível. Esse, aliás, é um dos principais desafios para quem pesquisa a incursão pelo insólito no cinema brasileiro.
Pouco da nossa produção silenciosa sobreviveu – segundo dados da Cinemateca Brasileira, estimava-se que menos de 10% dos filmes foram preservados, mesmo em fragmentos – e diversas obras posteriores são conhecidas apenas a partir de fontes terceiras, como registros na imprensa e material publicitário. Muitos filmes, inclusive, passaram a ser lidos como obras fantásticas tempos depois de seu lançamento, permitindo novas camadas de entendimento e reavaliações.
Como negar, por exemplo, a premissa sobrenatural da comédia O Jovem Tataravô (1936), em que um pozinho mágico traz à vida um parente falecido há mais de cem anos, ou tecnológica de Uma Aventura aos 40 (1947), que mostra uma televisão que permite a interação direta entre apresentador e telespectador?
De lá para cá, acompanhando uma cinematografia errática, essas narrativas repletas de elementos e situações inexistentes ou que fogem à nossa razão atravessaram movimentos e contextos diversos, podendo ser vistas no Cinema Novo, no Cinema Marginal, nas comédias eróticas, nos filmes dos Trapalhões e na produção atual. O cinema fantástico é diverso, tanto em quantidade quanto em qualidade, oferecendo um olhar nosso a um gênero consagrado em histórias de vampiros, fantasmas, discos voadores e feiticeiros.
Vemos demônios em O Cemitério das Almas Perdidas (2020), Filme Demência (1986) e O Auto da Compadecida (2000), alienígenas em Amor Voraz (1984) e A Princesa e o Robô (1984), lobisomens em As Boas Maneiras (2017), zumbis em Zombio 2: Chimarrão Zombies (2013), psicopatas em O Pasteleiro (1981) e Veneno (1952), presenças sobrenaturais em O Menino e o Vento (1967) e A Força dos Sentidos (1980), e mundos pós-apocalípticos em Abrigo Nuclear (1981) e Quem é Beta? (1972), sem contar todo panteão de obras dedicadas ao folclore brasileiro, como o Saci, presente em O Saci (1953) e As Fábulas Negras (2015), entre muitas outras. Panorama esse que inclui filmes como os gaúchos Barbosa (1988), Amor Só de Mãe (2003) e Morto Não Fala (2018), além de As Filhas do Fogo (1979), filmado em Canela, na Serra.
O livro Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais (Grupo Editorial Letramento), que será lançado no dia 28, às 17h, no último dia da programação do XX Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, nos permite acessar, de forma nítida e coesa, a construção de uma linguagem própria que diz muito a respeito sobre a maneira de ver o nosso país. Ela tornou possível tratar de questões urgentes e delicadas com uma abordagem criativa, divertida e amedrontadora e, ao mesmo tempo, crítica e reflexiva.
Cada um desses cem filmes essenciais contribui para dar significado e grandeza a um gênero que apenas agora vem ganhando o seu devido reconhecimento, não só pelo grande público como também pela própria crítica de cinema. Por esse prisma, é notável o fato de que, pela primeira vez, temos à disposição, na publicação, um volume de textos analíticos jamais reunidos em torno dessa produção, assinados por mais de uma centena de críticos, pesquisadores e realizadores.
Além de mergulhar em cem títulos previamente escolhidos por votação realizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), que servem como uma introdução para quem se interessar em conhecer esse cinema, o livro conta com 20 artigos que fazem um percurso dessa história. Das manifestações na produção experimental, infantojuvenil, de animação ou nas comédias, passando por perspectivas de diversidade, subgêneros como ecodistopias, nomes como Mojica, Ivan Cardoso e Jean Garrett, até o horror na Boca do Lixo e os filmes realizados diretamente em vídeo, encontramos um mundo dentro desse redescoberto cinema fantástico brasileiro.
O lançamento
Em Porto Alegre, será no domingo, dia 28/4, às 16h, na Cinemateca Capitólio (Rua Demétrio Ribeiro, 1.085), dentro da programação do XX Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre.