Por Fatimarlei Lunardelli
Crítica e professora de cinema no Curso de Realização Audiovisual da Unisinos
Não poderia haver nome mais expressivo para celebrar os 15 anos de um festival que desde seu início trilha os caminhos do cinema que se faz no continente latino-americano: a diretora argentina Lucrecia Martel é a homenageada do 15º Festival Internacional de Cinema da Fronteira, em Bagé. O evento começa na terça-feira (23/4), com atividades, além de Bagé, em Santana do Livramento e Rivera (Uruguai), e se estende até o fim de semana.
Nascida na província de Salta, em 1966, pertencente à geração que renovou o cinema argentino na passagem dos anos 1990 para os 2000, Lucrécia Martel é diretora de quatro longas-metragens e diversos curtas que a projetam como artista original no cenário internacional. Nas últimas décadas, retrospectivas de seus trabalhos foram exibidas em instituições de arte e cultura como Harvard, MoMA, Lincoln Center, Cambridge e no Tate Museum de Londres. Além dos prêmios, em 2019 ela presidiu o júri da 76ª edição do Festival de Cinema de Veneza.
Sua obra impactou desde o início, quando o longa de estreia O Pântano (La Ciénaga, 2001) ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim. Junto com A Menina Santa (La Niña Santa, 2004) e A Mulher sem Cabeça (La Mujer sin Cabeza, 2008) – ambos indicados no Festival de Cannes – constitui a chamada “Trilogia de Salta”, por terem sido filmados na região de origem da cineasta e por abordarem a temática comum das relações familiares da classe média. Os filmes apresentam um painel multifacetado de ambientes, histórias e personagens capturados no fluxo dos acontecimentos mostrados aos fragmentos com atenção a detalhes que escapam ao olhar cotidiano. Seu estilo realista esgarça os limites da percepção para melhor compreender a realidade.
A intenção de examinar a realidade em suas dimensões social e histórica a partir de um olhar observador, porém crítico, é acentuada em A Mulher sem Cabeça. Acompanha uma mulher (Maria Onetto) que, num descuido ao volante, atropela algo, quem sabe um animal ou uma pessoa. Essa incerteza gera um clima de tensão e suspense, aspectos recorrentes na obra da diretora que vincula esse filme ao período da ditadura na Argentina.
A mulher fica transtornada e se deixa manejar pelos homens da família que resolvem a situação eximindo-a da responsabilidade pelo acidente. Assim como na ditadura, enquanto algumas classes sociais viviam desamparadas outras se beneficiaram de suas relações com o poder instituído escapando com facilidade à justiça. A Mulher sem Cabeça será exibido em Bagé, na ocasião da homenagem à cineasta, na terça, às 16h, no Centro Histórico Vila de Santa Thereza.
O drama épico Zama, lançado em 2017, no Festival de Veneza, também será visto em Bagé, às 10h de quarta, no Cine 7. Apesar de fazer parte da geração argentina do cinema independente (quase sempre sinônimo de filmes baratos) os projetos de Lucrecia são concebidos em termos de produção tradicional e demandam custos altos. Zama, adaptado da novela histórica de 1954, do escritor e jornalista argentino Antonio Di Benedetto, é uma coprodução internacional entre oito países com participação brasileira e espanhola no elenco e na produção. No século 18 em Assunção, no Paraguai, o funcionário colonial espanhol Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho) espera em vão que seus superiores autorizem seu retorno para casa. Desesperançado de ser transferido, se junta a uma expedição para localizar Vicuña Porto, um lendário fora da lei que pode ou não existir. Como uma entomologista do comportamento humano, Lucrécia submete seu personagem a um escrutínio implacável, expõe seu autoengano, as ilusões consoladoras, os pequenos poderes que entrelaçam as relações. Costuma dizer que pessoas são como monstros, não por serem horrendas ou algo similar, mas por desconhecerem a própria natureza.
Seu projeto mais recente é o primeiro longa-metragem de não ficção, sobre o assassinato do líder indígena argentino Javier Chocobar, em 2009, na província de Tucumán. Ativista dos direitos humanos e cacique da etnia Diaguita, Chocobar lutava contra a remoção da comunidade indígena da terra de seus antepassados quando foi morto por Darío Amín, proprietário de terras na região, e seus comparsas, que foram condenados em 2018 e depois liberados pela Justiça. A morte de Chocobar se diferenciou dos atentados comuns contra indígenas porque foi filmada pelos assassinos e as imagens circularam no YouTube à época do crime.
Lucrecia Martel não se assume a uma cineasta política, entende, porém que a política está em todos os gestos. É nesse sentido que reconhecemos em sua obra – esteticamente ousada e atenta aos processos da cultura e da história – questões humanas universais com a consciência de um cinema vivido, realizado e compartilhado a partir do território latino-americano. Com certeza será um dos tópicos de sua aula magna América Latina, Pátria Grande, tema deste festival.
15ª edição do Festival Internacional de Cinema da Fronteira
O evento será realizado desta terça-feira até sábado em Bagé, Santana do Livramento e Rivera (Uruguai). Oferecerá seis oficinas, mesas de debate, sessões competitivas de curtas e longas-metragens, além de exibições especiais e homenagens ao ator Flávio Bauraqui e à cineasta Lucrécia Martel. Além da aula magna, às 20h de quarta, no Centro Histórico Vila de Santa Thereza, em Bagé, ela também terá uma conversa com o público em Porto Alegre, no próximo domingo, dia 28. Saiba mais em festivaldafronteira.com.br.