Por Marcus Mello
Programador, pesquisador e crítico de cinema
Em 2003, o festival Cine Esquema Novo, em sua edição inaugural, trazia na programação o curta-metragem A Menina do Algodão, um vídeo de horror com apenas seis minutos de duração, assinado por um ainda desconhecido diretor pernambucano chamado Kleber Mendonça Filho. Lembro bem disso porque, além de fazer parte do júri do festival naquele ano, também integrava a equipe da Sala P. F. Gastal (hoje fechada), onde o filme foi exibido. Por essas curiosas coincidências da vida, em 23 de agosto último, e agora reconhecido como o grande cineasta brasileiro de sua geração, Kleber Mendonça Filho veio a Porto Alegre para a pré-estreia de seu novo longa, Retratos Fantasmas. A sessão aconteceu na Cinemateca Capitólio, o imponente cinema de rua dos anos 1920 restaurado pela prefeitura municipal em 2015 (meu atual local de trabalho), e foi seguida por uma conversa do diretor com o público.
É importante citar esses dois fatos porque Retratos Fantasmas está diretamente relacionado a eles. Trata-se de um filme sobre filmes, sobre salas de cinema, sobre as transformações das cidades, sobre a passagem do tempo, sobre as coisas que acabam e as outras que surgem e sobre a incrível capacidade que o cinema tem de afetar nossas vidas. De certo modo, os 20 anos que separam a primeira exibição de um filme de Kleber Mendonça Filho na cidade, em 2003, e a sessão na Cinemateca Capitólio, em 2023, estão retratados ao longo dos 90 minutos deste novo trabalho.
Assim que as primeiras notícias sobre o projeto começaram a circular, criou-se uma enorme expectativa em relação a Retratos Fantasmas. Depois da consagração internacional com Aquarius (2016) e Bacurau (2019), filmes vistos como símbolos de resistência contra o avanço da extrema direita no Brasil, o diretor estaria se dedicando a uma empreitada mais pessoal: a produção de um documentário sobre as antigas salas de cinema do centro de Recife. Ao vermos o filme pronto, no entanto, nos sentimos um tanto enganados quanto à veracidade daquela informação. Afinal, Retratos Fantasmas é mesmo um documentário? À primeira vista, sim. Construído a partir de farto material de arquivo, com narração em voz over e estrutura em capítulos, podemos rotulá-lo como um filme-ensaio (uma das vertentes do gênero documental), inserido na tradição de realizadores como Chris Marker e Agnès Varda. Após uma breve introdução, cada uma das três partes é anunciada por letreiros de apresentação, “O Apartamento de Setúbal”, “Os Cinemas do Centro de Recife” e “Igrejas e Espíritos Santos”. A aparente rigidez da construção narrativa, no entanto, será abalada por um epílogo desconcertante, totalmente ficcional, que se rende ao gênero fantástico e nos leva a colocar em dúvida a real autenticidade de parte dos registros “documentais” a que fomos apresentados anteriormente. Elementos como o fantasma capturado acidentalmente em uma foto, as mutações digitais observadas nas imagens dos letreiros de um cinema durante o processo de montagem, o cão do vizinho que virou personagem de O Som ao Redor (2012) e até mesmo as bem documentadas informações sobre os palácios de cinema nazistas construídos em Recife nos anos 1940 também começam a sofrer uma espécie de mutação ficcional. É como se o projeto do filme documental fosse possuído pelo espírito da ficção, transmutando-se em um objeto misterioso e avesso à classificação. Impressão acentuada pela diversidade das imagens de arquivo utilizadas pelo filme, que combinam de maneira brilhante (mérito do montador Matheus Farias) obras de ficção e documentários, filmes de família, cinejornais, fotografias...
A liberdade com que o diretor manipula um trecho do curta pernambucano Eisenstein numa das sequências de Retratos Fantasmas parece confirmar essa tese. Se o Serguei Eisenstein ficcional criado em 2006 por Leonardo Lacca, Raul Luna e Tião afirma que “os filmes de ficção são os melhores documentários” (fala inexistente no original, como Kleber revelou no debate na Capitólio), Retratos Fantasmas insinua que talvez os melhores documentários sejam filmes de ficção. Nesse sentido, é em outro trabalho do realizador, o premiado mockumentary Recife Frio (2009), que encontraremos a melhor pista para decifrarmos as diferentes camadas de significado do novo filme.
A já citada sequência final, ao colocar o diretor em uma situação de ficção, como protagonista de um passeio literalmente fantástico pela noite do Recife, não deixa dúvidas. O cinema é algo extraordinário, capaz de afetar a nossa percepção do mundo real, abrindo um portal para o território do maravilhoso. Submetido a anos de exposição constante e sem moderação às luzes da cinelândia recifense, Kleber Mendonça Filho mostra ter aprendido desde cedo que fazer filmes é filmar fantasmas.
Retratos Fantasmas
De Kleber Mendonça Filho, documentário, 95 minutos. Em cartaz no CineBancários, na Sala Paulo Amorim e no Espaço de Cinema do Bourbon Shopping Country, em Porto Alegre