— Tudo muda. Não tem o que fazer — conta o recepcionista do GNC Cinemas do Praia de Belas, de Porto Alegre, Airton Teixeira Cavalheiro, de 58 anos.
Seu Airton dedicou mais de quatro décadas ao cinema. E não se arrepende. Ele começou a jornada em 1981, sendo auxiliar de operador cinematográfico do Cine Rei, que abrigava a única sala de Tupanciretã, sua cidade natal localizada na região central do Estado. A partir daí, relata que viveu uma realidade muito semelhante à do menino que descobre o mundo dentro de uma cabine de projeção no clássico italiano Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore.
Poucos anos depois, Seu Airton, já operador, mudou-se para Porto Alegre e foi responsável por projetar filmes em diversos cinemas de rua da Capital, como o Cine Real, na Avenida Assis Brasil, e o Cine Ritz, na Protásio Alves – até no Cine Carlos Gomes, que se dedicava a exibir produções pornográficas, ele trabalhou. E, sem nunca conseguir deixar de viver nesse universo em que as luzes se apagam para transportar as pessoas para realidades fantásticas, há 16 anos passou a atuar no GNC Cinemas.
Inicialmente, passava os filmes, mas não se adaptou bem à mudança dos projetores analógicos, de 35mm, para os digitais. Em 2015, deixou as cabines de projeção para atuar na recepção. Com voz mansa e sorriso fácil, ele se diz feliz com a função, mas os olhos brilham ao recordar da correria que era cuidar do maquinário, preparar os rolos de filmes e garantir uma sessão perfeita para os espectadores.
— Gosto do que eu faço aqui, na recepção, mas, se um dia precisarem de mim lá na cabine, vou correndo, preparo os rolos e coloco os filmes para rodar. Não esqueci de nada — garante.
Mesmo com a grande dedicação ao cinema, ele revela que tem um ponto fraco: era namorador demais na juventude. Tanto que, em uma exibição no Cine Ritz, chegou alguns minutos atrasado por estar enrolado com um interesse romântico – a sessão lotada para ver Campo dos Sonhos (1989) e todos à espera do projecionista.
— Na plateia, ainda estava o (jornalista) Lauro Quadros. Por sorte, eu deixava sempre tudo pronto no dia anterior. Daí, só cheguei correndo, liguei as luzes e coloquei o filme para rodar. Foi por pouco — recorda, aos risos.
Lugar de imersão
Hoje, os espaços em que Seu Airton atuou por boa parte da vida, os cinemas de rua, já não existem mais na cidade, com exceção da Cinemateca Capitólio, que tem uma proposta atrelada à preservação. Os espaços estritamente comerciais, hoje em dia, resumem-se a complexos instalados dentro de shoppings, sendo parte de um programa maior para muitos visitantes: fazer compras, comer na praça de alimentação e, depois, assistir a um filme. Para muitos, o cinema virou uma atividade no meio de outras. Não é mais o protagonista.
Segundo Ricardo Difini Leite, 57 anos, diretor de Operações da rede GNC Cinemas e que esteve à frente da Federação Nacional das Empresas Exibidoras (Feneec) por 12 anos, a tendência é que, tal qual os espaços que as salas ocupam, bem mais comerciais, os filmes em exibição também devem seguir por este caminho. As produções com uma pegada mais autoral, com menos efeitos especiais, por exemplo, tendem a ter lançamentos nos serviços de streaming, enquanto as salas de cinema devem abrigar os títulos que ele considera “filmes de espetáculo”.
Quando a reportagem visitou a cabine de projeção do GNC Praia de Belas, ainda em janeiro, metade das seis salas do cinema era ocupada por Avatar: O Caminho da Água (2022) e as demais se dividiam entre os outros lançamentos, todos de apelo comercial, como a animação Gato de Botas 2: O Último Pedido (2022). Já na programação do GNC Moinhos, que tende a exibir títulos mais autorais, o longa Aftersun (2022) estava em cartaz – mas também já estava disponível na plataforma de streaming Mubi.
Ou seja, as grandes produções, que custam centenas de milhões de dólares para serem produzidas, dominam o mercado – Avatar: O Caminho da Água, por exemplo, estreou em cerca de 70% das salas de cinema do Brasil, deixando que todos os outros filmes em cartaz disputassem o espaço restante. E tal prioridade para os filmes de grandes franquias estrangeiras se mostra uma aposta certeira para os exibidores, uma vez que, em 2022, de acordo com dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), os longas-metragens estrangeiros faturaram, nas salas brasileiras, R$ 1,753 bilhão. Enquanto isso, os filmes feitos no país arrecadaram apenas R$ 71,54 milhões.
Para efeito de comparação, o mercado de streaming mobilizou, em 2022, cerca de R$ 1 bilhão, de acordo com estimativa do JustWatch, site alemão especializado no setor. E, enquanto as líderes Netflix e Amazon Prime Video ficaram praticamente estáveis no ano que passou, sendo responsáveis por 31% e 21% das fatias do mercado, respectivamente, o Disney+ foi a plataforma que registrou crescimento de 3%, passando a somar 15% do total das assinaturas no país.
Na lista das maiores arrecadações do cinema no ano passado, liderada por Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), da Marvel, o primeiro filme nacional que aparece é Turma da Mônica – Lições (2021), na 29ª posição – levando em consideração que o longa é do ano anterior. O primeiro filme brasileiro lançado em 2022 no ranking é a comédia Tô Ryca! 2, em 30º lugar. Assim, mostra-se que as salas brasileiras são dedicadas ao cinema hollywoodiano. Será que, com mais espaço para os filmes menores e para os títulos nacionais, a realidade não seria outra? Para Difini, a entrega se dá de acordo com a procura do público.
– Os filmes com mais efeitos especiais têm mais atratividade, pela experiência na sala de cinema. Em produções como Avatar: O Caminho da Água, por exemplo, cria-se uma imersão maior, um grande envolvimento, pela questão da imagem e do som. Já depois da pandemia, com a explosão dos streamings, percebeu-se que, no caso dos filmes mais autorais, a experiência não muda tanto ao serem assistidos em casa. Eles estão tendo uma diminuição na procura – destaca.
Questionado se o movimento não pode ter relação com o alto valor dos ingressos, que não permite que as pessoas estejam com frequência nas salas de cinema e, por isso, precisam ser criteriosas sobre qual filme assistir, Difini defende que tal programa segue sendo um dos mais baratos e que o preço médio do ingresso não chega a R$ 20. Porém, salienta que “o valor seria ainda menor caso não houvesse a lei que garante a meia-entrada”:
— A meia-entrada faz com que a inteira fique mais cara. Então, no país, o porteiro e a faxineira precisam pagar uma inteira, enquanto um aluno universitário, que muitas vezes tem condições, paga meia — explica.
O exibidor reforça que 2019, último ano antes da pandemia, foi um dos melhores em termos de arrecadação para o GNC. E o número, segundo ele, quase foi alcançado em 2022, mesmo vindo da pandemia.
Os velhos rolos de filme
Há mais ou menos 10 anos, para chegar às telas de cinema, um lançamento precisava passar por uma verdadeira e pesada jornada. As distribuidoras rodavam os filmes em películas, em laboratórios como a Cinecolor, em São Paulo, e cada produção ocupava de cinco a oito rolos. Levando-se em conta o peso de cada um, a cópia de apenas um título, para um único cinema, poderia chegar a 20 quilos. E toda essa carga precisava ser manipulada na sala de projeção, exibição por exibição, conectando uma película na outra, cuidando para não arrebentar e também não errar a ordem. Já pensou assistir a um filme começando pelo fim e terminando pelo meio?
Essa situação, inclusive, ocorreu com Carlos Schmidt, 69 anos, que foi proprietário do Guion Center, que ficava no centro comercial Nova Olaria, na Cidade Baixa, e que chegou ao fim em setembro de 2021, após 26 anos de operação. Certa vez, na exibição de um filme de Jean-Luc Godard, houve confusão com os rolos, e o público achou que o cineasta francês estava sendo mais disruptivo do que de costume – afinal, a ordem do longa estava completamente embaralhada.
— Entrei em 1979 nessa função, tendo que carregar latas para exibir os filmes. Imagina só: um filme podia chegar a 25 quilos. Além de cuidar para não trocar os rolos, ainda tinha a chance de arrebentar a película ou, até mesmo, de exibir de cabeça para baixo o filme. Era muito complicado — recorda.
Quando a projeção digital entrou em cena no Brasil, por volta de 2015, ele comemorou. Afinal, o processo ficou mais rápido e menos pesado. Com a atualização, os arquivos dos filmes passaram a ser enviados por satélite ou, em casos específicos, a obra chega em um HD. Os projetores, então, passaram a ser automatizados, podendo ser controlados até a distância – para programar os títulos do GNC Praia de Belas, por exemplo, o gerente Rodrigo de Abreu Rosa, de 40 anos, fica no andar de baixo, coordenando tudo pelo computador. Antes, quando era operador cinematográfico, tinha de subir a escadaria carregando os rolos nos ombros.
Trabalhando há 15 anos no cinema, ele viu o começo do maior fenômeno dos últimos tempos: o Universo Cinematográfico da Marvel. E foi por causa dessa franquia que ele presenciou aquela que considera a mais marcante experiência em sua atividade: a pré-estreia de Vingadores: Ultimato (2019), que lotou simultaneamente as seis salas do GNC Praia de Belas. Para ele, foi um trabalho exaustivo, mas recompensador, uma vez que teve de organizar, juntamente com os colegas, a entrada de milhares de fãs para as sessões – que foram realizadas no começo da madrugada. Nunca tinha visto tanta gente junta para um mesmo filme, ele recorda. E, a partir dali, percebeu que o cinema caminharia atrás desse tipo de público:
— O nosso público procura esse tipo de filme. Sempre chega alguém perguntando quando o próximo Vingadores vai estrear. Nos 15 anos em que trabalho aqui, o interesse por esse gênero só aumentou. E, pelos filmes mais artísticos, foi diminuindo. Tanto é que a gente quase não exibe mais aqui.
Mas o romantismo do cinema do passado ainda vive, mesmo que restrito. Na Cinemateca Capitólio, a sala de projeção conta com dois equipamentos: um digital, alinhado com a tecnologia atual, e outro analógico, para exibir os títulos em película 35mm, em sessões especiais – muitas delas com filmes gaúchos, abrigados e conservados na própria instituição, que conta ainda com diversas atividades voltadas para o fomento do audiovisual.
Indo no sentido oposto das salas comerciais, a Cinemateca Capitólio, que é um espaço ligado à Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa de Porto Alegre, busca a preservação da memória cinematográfica do Estado e a valorização de títulos que não conseguem espaço em complexos comerciais. Assim, na sala, é possível assistir a filmes novos e também ao resgate de antigos.
Inclusive, quando a reportagem visitou o local, em janeiro, estava sendo realizada uma mostra intitulada A Era do VHS, exibindo na tela produções clássicas como Videodrome – A Síndrome do Vídeo (1983), de David Cronenberg, Blade Runner – O Caçador de Androides (1982), de Ridley Scott, e 9 ½ Semanas de Amor (1986), de Adrian Lyne. A diretora da Cinemateca Capitólio, Daniela Mazzilli, de 36 anos, destaca que o local carrega a essência do cinema e, inclusive, mantendo a mesma arquitetura e os detalhes do prédio do Cine Theatro Capitólio, inaugurado em 1928. Ou seja, quem entra no espaço, que foi devolvido à população em 2015, pode experimentar a sensação que os porto-alegrenses vivenciavam há quase um século.
— A experiência na sala escura é única. É nesse local que a pessoa é impactada pelo riso ou pelo choro da pessoa ao lado. É uma vivência coletiva, única. Esse é um espaço de acolhimento e que faz as pessoas lembrarem como é legal ver um filme no cinema — aponta Daniela.
De acordo com ela, a Cinemateca Capitólio consegue mesclar a nova geração com os cinéfilos veteranos – as faixas etárias que mais frequentam o local são entre os 18 e 20 anos e os maiores de 60. Todos com o objetivo de ter a mágica experiência exclusiva do cinema, já que na sala, por exemplo, não são permitidos alimentos. Quem entra no recinto, que oferece ingressos acessíveis – a R$ 10 ou gratuitos – quer ver um bom filme. E nada para atrapalhar.
O passado a preservar
O projetor de película que é a conexão entre a forma de assistir aos filmes do passado com o público do presente segue firme e forte na cabine de projeção da Cinemateca Capitólio. Um dos responsáveis por fazer o equipamento funcionar é o operador cinematográfico Fernando Pinto da Costa, de 45 anos. Ele aprendeu a profissão dentro de um espaço como aquele em que trabalha hoje – citando, tal qual Seu Airton, que sua vida imita a arte vista em Cinema Paradiso.
Costa, que atua desde 1995 com projeção, aprendeu o que era cinema manuseando os rolos de 35mm, vendo uma sucessão de fotos estáticas, alinhadas em um negativo, transformarem-se em um filme na tela de projeção. Era um trabalho braçal e que demandava muita atenção – às vezes, até rápidas operações de recuperação do trabalho: caso o filme arrebentasse, por exemplo, era preciso colar as partes para que ele pudesse voltar para a máquina.
Hoje em dia, ele admite que o processo ficou muito mais simples com os filmes digitais, uma vez que não é preciso fazer força com as diversas latas com película nem é necessário ficar em alerta o tempo inteiro para possíveis problemas. Mas, ao ser perguntado se prefere a agilidade e a praticidade de agora ou a “correria” de antigamente, ele não pensa duas vezes:
— Como era antes, sem dúvida. Pelo saudosismo, por ver o filme trepidando na tela. Era uma experiência ímpar, valia a pena a trabalheira toda. Era mágico — define, enquanto coloca a mão no projetor de 35mm e olha com carinho para o equipamento.
Hoje em dia, a máquina analógica não reproduz os títulos novos. Ela vive das glórias do passado – e que não são poucas. Na abertura da Cinemateca Capitólio, há oito anos, por exemplo, foi ela a responsável por exibir Vento Norte (1951), o primeiro longa-metragem sonoro gaúcho, que foi rodado no Litoral por Salomão Scliar. Frame a frame, a produção chegou aos olhos e ouvidos de quem esteve presente, em uma experiência única, uma vez que o título não passou por um processo de digitalização e fora exibido em 35mm.
Mesmo tendo o equipamento para essas exibições, os responsáveis pela Cinemateca Capitólio temem pelo futuro, uma vez que o projetor, assim como demais ferramentas para lidar com as películas, como as moviolas, não possuem novas peças de reposição chegando ao mercado. Para consertar qualquer tipo de problema, é necessário encontrar os itens de substituição em outras máquinas antigas – o que está se tornando cada vez mais difícil.
Assim, entre enjambres e preocupação, o projetor segue funcionando, mas cada vez mais perto de se tornar inoperável. E, assim, um acervo riquíssimo da história gaúcha pode não ser mais exibido dentro da casa responsável por preservá-lo.
O casal formado pelo microempresário Marco Aurélio Loureiro, de 60 anos, e o professor Miguel Antônio Machado, de 52, estava saindo da sessão de Videodrome – A Síndrome do Vídeo, na Cinemateca Capitólio, e já olhava para a programação na parede do espaço, procurando qual seria a próxima aventura cinematográfica de ambos.
Ao serem questionados sobre o motivo de irem ao cinema, falaram quase em uníssono:
— Não tem como reproduzir essa experiência em casa.
Miguel, apreciador de um cinema mais autoral, se esbalda com os títulos disponibilizados pela Cinemateca Capitólio e salienta que o local é um dos poucos que ainda fogem das produções puramente comerciais – das quais ele não é tão fã assim.
— Aqui, tem um resgate do passado, da vivência do cinema de rua. E, quando tem exibição de filmes em 35mm, tem um charme — afirma.
Já Marco Aurélio, apreciador de todos os tipos de filmes, mais autorais ou comerciais, acredita que marcar presença nesses espaços devotados ao cinema é incentivar a produção de mais títulos.
— Além disso, vir para a sala de cinema tem um gostinho diferente — diz.
Já no GNC Praia de Belas, Manoella Remião, 19 anos, e a avó Vera Regina Goulart, 75, esperavam para assistir a Gato de Botas 2: O Último Pedido. Para elas, que estavam indo ao cinema juntas pela primeira vez, não importa se a projeção é digital ou analógica – elas sequer notaram que houve uma mudança nos últimos 10 anos.
— O que me importa é que o filme seja bom e também que eu possa ver gente — comenta dona Vera.
E, aproveitando a temática do filme que avó e neta foram assistir, Ricardo Difini Leite diz que, desde quando tinha 10 anos, ouve que o cinema vai acabar – antes, pela televisão, depois pelas locadoras e, agora, pelo streaming. E a sétima arte permanece, diz Difini:
— Eu sempre digo que o cinema é a sétima arte porque, assim como um gato, tem sete vidas.