Enéas de Souza (*)
Imagino quando morreram Eisenstein, Griffith, Dziga Vertov, Dreyer, Murnau: aqueles que aprenderam a ver e fazer cinema com eles, como ficaram abalados pelas ausências dos mestres. Morrer um inventor do cinema faz com que as lembranças deles se exaltem e, também, emerja uma paradoxal e poderosa alegria. Ali, nos seus filmes, o cinema se mostrava uma madrugada nova, uma arte da imagem como um dia vigoroso e solar. Veja O Encouraçado Potemkin (1925), Intolerância (1916), Um Homem com uma Câmera (1929), Gertrud (1964), Aurora (1927). Morre o homem, morre o cineasta, mas seu olhar atravessa os tempos numa navegação voluptuosa a convocar e a provocar perplexidade em gerações futuras.
Todos carregaram para as telas imagens e ideias de cinema que acossam diretores e críticos, como Godard. O cinema é um eterno retorno da invenção das imagens.
Em todo o seu movimento de cineasta e de crítico, Jean-Luc Godard (1930-2022) nos ensina a ver e a fazer cinema. Isto significa não copiar, não roubar um plano ou uma ideia, mas aprender, isto quer dizer fazer por si próprio, inventar um novo cinema, uma nova crítica. Sem deixar, evidentemente, de se inspirar nos que o precederam. É inesquecível O Desprezo (1963), uma absoluta homenagem criativa ao cineasta Fritz Lang, que participa do filme.
Como escrevi no meu livro Os Filmes Pensam o Mundo, o pensar dos cineastas passam por níveis: pensar a história em imagens, pensar o cinema e pensar o mundo. Trataremos rapidamente desses pontos.
Atropelando a história em imagens: o pensar a história nos revela em Godard uma posição contra o cinema-espetáculo, uma postura adversa à Hollywood. Na boa, sustenta um cinema de autor, rebelde com causa e inovador.
O que faz é desmanchar um drama encadeado, lógica de causa e efeito até um final indispensável. Sempre achando a história como diria Wim Wenders, pondo uma cena ao lado de outra.
A solução: escolhe um ator, que compõe uma figura humana e movimenta o seu drama através do seu corpo, com uma forma especial de falar, de olhar, de agir, que tem um rosto específico, que funciona com diversas faces: de frente, de perfil, de costas, e que se define por determinado(s) gesto(s), como o de Belmondo passando o polegar pelos lábios em Acossado (1960). Com a escolha do ator (Michel Piccoli, Johnny Holiday, Alain Delon, Samy Frei) ou atriz (Jean Seberg, Ana Karina, Brigitte Bardot), o drama já está existindo. O espectador vai sabendo quem é o personagem, o que ele quer, o que ele pensa, fica acompanhando para aonde vai. Não precisa de um páthos dramático, a história já está no corpo e no movimento deste corpo.
Claro que isso tudo não se faz sem cenário. Godard põe um personagem num lugar onde um Tempo se desenrola num Espaço que geralmente não se move.
O personagem cai ali e se machuca, o Tempo não se abre para a figura dramática. A morte de Pierrot, explodindo com uma manta de dinamites enrolada na sua cabeça em O Demônio das Onze Horas (1965), é o desfecho do argumento.
A criação do novo cinema na Nouvelle Vague: com a desdramaticidade e o descosido do enredo, o jogar a história em pedaços não impede diálogos dos personagens, mas esses estão dentro da chave do cinema de Godard: a montagem. A história vai caminhando tropegamente, fica parada, fala-se muito sobre a vida, o amor, o sonho, o mundo etc. mas, o que importa é o encaixe disso tudo, a arte do cineasta, a montagem. A câmera ao ter um ponto de vista é ato de montagem, botar um ator no enquadramento só ou acompanhado é montagem, soltar a câmara deixando fora do plano o ator é montagem, botar um plano em relação a outro é montagem. Como diz Godard: montagem, minha bela preocupação.
O que pensa Godard sobre o mundo: o grande tema, o grande personagem de Godard é a História, absolutamente notável em História(s) do Cinema (1989-1999), onde o mundo é imagem. Usando todos os recursos do cinema e do vídeo, a História do século 20, desde os dramas amorosos até os dramas dos conflitos armados e do socialismo, passa pela prepotência dos dirigentes empresariais (representados pelos produtores de cinema), que rimam com o fascismo. Assim, as imagens do cinema são a metáfora da História (do século 20), o grande personagem de Godard.
(*) Crítico de cinema da revista Teorema e autor dos livros "Trajetórias do Cinema Moderno" e "Os Filmes Pensam o Mundo"