Por Marcos Weiss Bliacheris
Advogado da União, mestre em Ambiente e Sustentabilidade
Em um dos mais tocantes parágrafos escritos por Eduardo Galeano, no seu O Livro dos Abraços, ele nos relata a viagem de pai e filho rumo ao mar. Diante da imensidão até então desconhecida, o menino emudeceu e, quando finalmente consegue falar, pede ao pai: “Me ajuda a olhar!”.
Quando, no escuro da sala de cinema, escutei pela primeira vez a audiodescrição de uma cena, senti essa mesma sensação. Ao ouvir os detalhes do que estava vendo, a impressão foi de que o narrador estava ajudando seu público a olhar aquela obra audiovisual.
Vivi isso no Festival de Cinema Acessível, evento promovido pela Som da Luz Estúdios e que terá mais uma edição no dia 14, em Porto Alegre, com a exibição de Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001). É o sexto ano dessa iniciativa que já levou mais de 14 mil pessoas ao cinema em 34 diferentes cidades, além de uma edição “kids” dirigida ao público infantil.
Para muitos de nós, que enxergamos, a audiodescrição é uma ilustre desconhecida. Para uma pessoa cega, esse recurso é o que torna possível estar em uma sala de cinema para acompanhar um filme e, como tantos de nós já fizemos muitas vezes, nos emocionarmos com uma boa história.
Além de trazer a sétima arte para pessoas com deficiência visual, os filmes têm recursos dirigidos a pessoas com deficiência auditiva, contando com legendas explicativas, onde são descritos também os sons, além de uma janela com a tradução simultânea para Libras, a língua brasileira de sinais. Procurando não deixar ninguém de fora, é uma experiência que vale a pena para qualquer pessoa, como exercício da hoje tão falada empatia, a experiência de se colocar no lugar do outro. Não por acaso, muitos espectadores que enxergam acompanham a sessão com uma venda nos olhos.
Em uma dessas sessões de cinema, fui apresentado a um grupo de pessoas surdas, e começamos a conversar com a ajuda de ouvintes fluentes em Libras. Quando eles saíram, fiquei a ver meus companheiros de conversa tagarelar com as mãos e me senti como se estivesse em uma conversa em chinês ou sânscrito, sem compreender nada. Refleti sobre essa sensação de exclusão que provavelmente faz parte do dia a dia deles, que convivem conosco, pessoas totalmente ignorantes da língua dos sinais.
No festival, projeção rima com inclusão, pois incluir é remover barreiras, que são os obstáculos que impedem que uma pessoa com deficiência tenha uma vida plena e em igualdade de condições com as demais pessoas da sociedade. Ao trazer esses recursos para a sala escura, busca-se superar a barreira comunicacional que retira de pessoas com deficiência o direito à cultura e ao lazer. (Também são realizadas sessões especiais para autistas, com as luzes da sala suavemente acesas e o volume do som reduzido.)
Ao tornar o filme acessível, Sidnei Schames, o idealizador do projeto, constrói uma ponte sobre esse obstáculo permitindo que todos e todas a atravessem e tenham acesso ao mundo da sétima arte. Isso é o que chamamos de “acessibilidade”. E, nesse caso, o esmero com que a produção é feita lembra mais uma verdadeira versão artesanal e de qualidade do que uma simples transposição do conteúdo em outras línguas e linguagens.
Parafraseando Hannah Arendt, a inclusão é o direito a usufruir os demais direitos. Não é um favor nem uma concessão que a sociedade dá quando bem entende, mas um direito que deve estar disponível para quem precisa sempre que se fizer necessário. Pena que iniciativas como essas ainda sejam isoladas e se concentrem nos grandes centros urbanos.
O Festival de Cinema Acessível, ao exibir um filme de Harry Potter para seu público cativo, lembra que o cinema vive de magia e nada melhor que tornar essa mágica disponível a todos.
A sessão
Harry Potter e a Pedra Filosofal (EUA/Reino Unido, 2001), de Chris Columbus, será exibido no próximo sábado, dia 14, às 14h, na Sala Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736), em Porto Alegre. Haverá reprise no dia 18, com duas sessões direcionadas a escolas. O Festival de Cinema Acessível é exibido em diversas cidades há sete anos. Na capital gaúcha, o evento seguinte será no segundo semestre, quando está prevista a exibição de Avatar (EUA, 2009), de James Cameron.