Tema urgente na pauta do bem-estar social, a acessibilidade engloba, além de iniciativas de mobilidade, o consumo de cultura. Nos últimos anos, têm ganhado corpo em Porto Alegre projetos como o Festival de Cinema Acessível, que chega à quarta edição apresentando filmes com legendas e áudios descritivos e tradução em Libras voltados, desde 2017, ao público infanto-juvenil.
Iniciativa de Sidnei Schames, diretor da produtora Som da Luz, o festival exibe amanhã, às 15h, em sessão gratuita no Cine Santander (Rua Sete de Setembro, 1.028), Divertida Mente (2015), animação vencedora do Oscar. Tem reprise na quarta, no mesmo local, às 14h, destinada a escolas (agendamentos pelo telefone 9 9594-5558 ou pelo e-mail somdaluz@somdaluz.com.br).
Em 10 e 14 de novembro, será projetado outro grande sucesso, Frozen (2014). No próximo ano, as duas animações cumprirão circuito pelo interior do Estado. De acordo com Schames, o projeto já soma 8.890 mil espectadores, entre deficientes e não deficientes.
– O que não é acessível é o modo tradicional de fazer as coisas, não pensando em um quarto da população – destaca o produtor que agora se projeta um festival voltado para filmes de ficção e aventura.
O Plano Nacional de Cultura prevê que 100% dos aparelhos culturais sejam plenamente acessíveis até 2020. Dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontavam que 45,6 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência severa (23,91% da população).
Em meio à satisfação com o retorno positivo, com espectadores que relatam compreender, pela primeira vez, o enredo de um filme, Schames aponta a complexidade de produzir um filme com acessibilidade. Muitos surdos são alfabetizados em Libras e por isso não dominam o português, o que torna a escolha de palavras mais delicada. Além disso, o idioma tem suas gírias e expressões próprias. Por isso, o diretor movimenta, para cada título, uma equipe de 20 a 28 profissionais, sempre prezando por pessoas com alguma familiaridade com o tema ou gênero cinematográfico adaptado.
– Audiodescrição no Brasil é feita de forma profissional há 15 anos. Tudo muito novo e experimental, diz preocupado.
O festival conta com recursos via Lei Rouanet. Para a versão “kids”, com cinco filmes (três foram exibidos em 2017), o orçamento foi de R$ 450 mil. Schames diz ter captado verba para viabilizar quatro, bancando outro do próprio bolso.
Opções para se divertir também em casa
Além do Festival de Cinema Acessível, também é realizado na Capital o projeto Cinema Inclusivo, com sessões regulares na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mário Quintana. Responsável pela programação do espaço, Mônica Kanitz destaca que, desde 2016, com a Instrução Normativa 128, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o mercado passou a oferecer mais títulos com recursos de acessibilidade. Falta, ela destaca, é o engajamento dos cinemas para divulgar o material:
–Esses filmes precisam ser exibidos de alguma forma, senão ficam jogados em uma gaveta, expõe. A próxima sessão está marcada para o dia 27 de outubro, quando será exibido o documentário Divinas Divas (2016), de Leandra Leal.
Deficientes visuais e auditivos também procuram acessar conteúdos em casa. A plataforma de streaming Netflix, por exemplo, oferece sete produções nacionais com legendas e áudios descritivos. Pelo menos duas atrações com acessibilidade para o público infanto-juvenil estão no YouTube: Min e as Mãozinhas, série animada narrada em Libras, produzida por Paulo Henrique dos Santos, e Mãos Aventureiras, projeto desenvolvido pela professora da UFRGS Carolina Hessel em parceria com a universidade em que ela conta histórias infantis para surdos. A iniciativa surgiu quando Carolina ao estudar, no doutorado, canais para surdos encontrou um mercado carente de opções. Hoje, com mais de 7 mil seguidores, ela busca preencher impulsionar o protagonismo surdo com história infanto-juvenis.
– Ao contar as histórias, de outros autores, na língua de sinais a questão central é o uso da própria língua em um contexto de dramatização. Não se trata simplesmente do uso dos sinais, mas das expressões faciais e corporais que aproximam os leitores surdos da obra, explica.
A recente edição do Porto Alegre Em Cena apresentou tradução em Libras nos 10 espetáculos locais que concorreram ao Prêmio Braskem. O festival contou ainda, pela primeira vez, com a audiodescrição – no espetáculo musical Horoya. Fones de ouvido foram distribuídos aos 34 cegos que acompanharam o show.
– Nosso intuito é tornar o Em Cena acessível em todos os sentidos. Seja através de audiodescrição, Libras e distribuição de ingressos para pessoas de baixa renda – afirma Laura Leão, coordenadora de produção.
A questão de acessibilidade é uma inquietude de Amanda Mensch Eltz, historiadora e coordenadora do museu do Centro Histórico-Cultural Santa Casa (CHC). Desde 2016, ela é uma das responsáveis em tornar as exposições do museu acessíveis por meio de audiodescrição, informações em braile e outros recursos.
A iniciativa foi aprovada para receber recursos financeiros da Lei Rouanet em 2012. Porém, devido a não captação total dos recursos - cerca de R$ 190, conseguindo obter 70% do valor - inviabilizou o projeto inicial.
– Não é que as empresas não ajudem, é que preferem contribuir para um show que atrai mais visibilidade (à marca), esclarece Amanda.
Pensar no coletivo é dilema também do artista paulista Fabrício Zava, 34 anos. Ele buscou meios de tornar acessível a pessoas surdas os clipes que integram o álbum Intersecções. De forma pioneira, ele com auxílio de um intérprete traduziu as músicas em Libras.
– Eu não movimento os lábios para cantar, fazendo uma inversão. A poesia vem em Libras, instrumentos brincando com a imagem e som e uma dança usando o arco de um cello (instrumento presente no arranjo da música) para representar a musicalidade, descreve.
Fabrício cresceu na cidade de Socorro, em São Paulo, que serve de referência nacionalmente no quesito turismo acessível, mas observa que as barreiras quebradas se restringem a acessos físicos, não proporcionando cultura a pessoas cegas e surdas.
Por mais iniciativas como esta, relato da jornalista Cris Lopes
O Festival de Cinema Acessível é uma das poucas oportunidades que cegos e surdos têm de assistir nos cinemas a algum filme com recursos de acessibilidade. Não falo isso para promover o festival, mas como pessoa cega, que não se sente representada nas salas de cinema, cheias de pessoas murmurando emburradas quando alguém fala algo para descrever as cenas de um filme.
Morando há cinco anos e meio em Porto Alegre, posso contar as vezes em que entrei em uma sala de cinema para assistir a um filme com acessibilidade. Se foram cinco, ainda será muito. Mas não é por falta de iniciativas legais que regulamentem a oferta do recurso.
A Lei Brasileira de Inclusão, aprovada em 2015, e outras resoluções da Agência Nacional de Cinema (Ancine) determinam que a audiodescrição (narração de diálogos e “climas” para deficientes visuais), legendagem em Libras (linguagem de sinais para deficientes auditivos) e em close caption (legendas descritivas da ação) já deveriam estar disponíveis no circuito de cinemas e nos canais de TV.
Mas inúmeros adiamentos são justificados com argumentações que, para as pessoas com deficiência, não são legítimas. Fala-se em restrições impostas pelo mercado e na relação custo-benefício do investimento, ignorando uma grande parcela de potenciais consumidores.
A falta de acessibilidade não se resume ao cinema, mas a toda gama cultural, como livros, exposições, museus, entre outros produtos e programas que poderiam ser consumidos por esse público.
No entanto, preciso exaltar atitudes de grupos que oferecem gratuitamente audiodescrição para deficientes visuais em peças de teatro e em aplicativos para celular. Este é um recurso que possibilita, em ainda poucas ocasiões, assistir a um filme com audiodescrição no cinema.
Atitudes como essa dos organizadores do Festival de Cinema Acessível promovem nossa plena inclusão na programação cultural de Porto Alegre.