Retratando uma viagem de um jovem David Bowie pelos Estados Unidos, a polêmica cinebiografia não autorizada do camaleão do rock chega às plataformas digitais do Brasil nesta quarta-feira (26). Stardust estará disponível nos serviços iTunes, Apple TV, Google Play, Now, Vivo Play e Sky Play. Rodado sem a bênção da família do artista britânico, o filme desagradou parte dos fãs antes mesmo de estrear.
Stardust é dirigido pelo cineasta britânico Gabriel Range, mais conhecido pelo documentário ficcional A Morte de George W. Bush (2006). Coube a Johnny Flynn a responsabilidade de interpretar o multifacetado David Bowie. Nascido na África do Sul, mas criado na Inglaterra, o ator já participou de atrações como a série Lovesick (2014-2018), da Netflix, e o filme Emma (2020).
O recorte que Stardust propõe envolve os dias de luta de Bowie, pouco antes da glória: a cinebiografia se passa no ano de 1971, quando o artista viajou até os Estados Unidos para promover o disco The Man Who Sold the World (1970). Além da faixa-título, o trabalho traz joias como All The Madmen e The Width of a Circle. É aquele álbum que traz Bowie na capa da edição britânica de vestido e cabelo comprido e cacheado. Naquela época, o artista já havia chamado a atenção com Space Oddity (1969).
Na trama, Bowie deixa a esposa grávida, Angie (Jena Malone), esperando-o na Inglaterra, enquanto tenta alcançar o estrelato nos EUA, crente que uma turnê promissora o aguarda. Porém, a gravadora não está empolgada com o trabalho do cantor e pouco se esforça em sua divulgação. Por conta de problemas em seu visto, o cantor não pôde realizar shows em território americano.
O empresário Ron Oberman (Marc Maron) é designado para batalhar por um espaço para o artista — seja arranjando pequenos shows, encontros corporativos ou entrevistas. Só que Bowie não se ajuda: ele é embaraçoso e desconexo ao responder as perguntas dos jornalistas. Suas apresentações para pequenos públicos são desconcertantes.
Ao mesmo tempo, Bowie carrega o peso de seu irmão, Terry (Derek Moran), que está internado com problemas de saúde mental. O artista receia portar a mesma condição psíquica. Então, Bowie começa a perceber a necessidade de se reinventar. Quem sabe inventar uma nova persona. É a partir dessa percepção que surge seu alter ego alienígena, Ziggy Stardust, como o filme já entrega no trailer.
Produção independente e realizada à revelia da família do cantor, Stardust não conta com as músicas de Bowie — similar ao que ocorreu com Jimi: Tudo a Meu Favor (2013), que retrata a vida de Jimi Hendrix. Ou seja, aqui são executadas músicas de terceiros. Também não dá para esperar aqui a potência de cinebiografias como Bohemian Rhapsody (2018) e Rocketman (2019). A proposta é outra, embora não tenha sido bem executada e tampouco fique clara.
Johnny Flynn até se esforça, mas precisa conduzir um Bowie que é simplesmente patético —problema que está na concepção do personagem desde o roteiro. É um artista inseguro e apático, que chega a ser irritante. Não há sombra daquela personalidade instigante que se estabeleceu ao longo da trajetória do músico. Haveria muitas nuances possíveis de Bowie a serem exploradas: música, processo criativo, sexualidade, sua relação com Angie, entre outras, mas Stardust não avança em nada. Tudo fica na superfície em um filme que não sabe bem para onde ir.
Há fatos em Stardust que são difíceis de digerir: Angie surge grávida do nada e não há menção ao filho. O filme esquece de Hunky Dory (disco lançado no final de 1971, que traz Changes e Life on Mars?), trabalho importantíssimo para a carreira de Bowie. Pula abruptamente para o artista já transformado em Ziggy. Essa metamorfose, que seria um dos principais propósitos do filme, não é construída com clareza. Aliás, o longa soa repetitivo ao trazer três entrevistas de Bowie que não vão a lugar nenhum — um artista com três discos lançados se portando como amador ao lidar com a imprensa? Complicado.
Claro, pode-se argumentar que é uma cinebiografia inspirada em fatos reais, uma interpretação ou romantização da história. O letreiro no início do filme avisa: "O que aparece a seguir é (na maior parte) ficção". Nem assim. Stardust falha em desenvolver o personagem, se arrasta e é entediante em muitos momentos.
Reações negativas
Com tudo isso, muitos fãs de Bowie podem torcer o nariz ao assistir Stardust. Mas a reação negativa surgiu logo na divulgação do trailer. Houve quem criticasse a escolha de Flynn para o papel, por sua falta de semelhança com o artista ou pelo fato de ser mais velho (o ator tinha 35 anos durante as filmagens, enquanto Bowie tinha 24 em 1971). A ausência de canções de Bowie também causou estranheza.
Contudo, os fãs criticaram essencialmente o fato de a cinebiografia ter sido produzida sem o consentimento da família, além de desrespeitar um antigo desejo do artista. Morto aos 69 anos em decorrência de câncer de fígado, em 2016, Bowie não pretendia ser retratado em uma cinebiografia.
Já em 2019, antes de qualquer trailer de Stardust, o filho primogênito de Bowie, o cineasta Duncan Jones, havia manifestado sua opinião contrária à produção. Expressou no Twitter que não aprovava a cinebiografia ao comentar uma reportagem da revista The Hollywood Reporter que trazia detalhes sobre o filme.
"Ninguém concedeu direito de utilização das músicas para uma biografia... Eu saberia disso. Não estou dizendo que este filme não vai acontecer. Eu, sinceramente, não sei. Estou dizendo que, do jeito que está, este filme não terá nenhuma música do meu pai, e não consigo imaginar esse cenário mudando. Se você quiser ver uma cinebiografia sem as músicas dele ou a bênção da família, esta é uma escolha sua", escreveu Jones.
Quando um fã questionou Jones se haveria uma maneira de ele liberar as músicas do pai para algum projeto criativo, ele se mostrou favorável: "Se Neil Gaiman quisesse escrever algo usando os personagens do meu pai, e se Peter Ramsey (diretor de Homem-Aranha no Aranhaverso) e sua equipe quisessem transformar isso em uma animação, eu conversaria com todos ao meu redor para dar atenção à ideia e considerar a proposta com seriedade".
A ex-esposa de Bowie e mãe de Duncan, Angie, afirmou ao jornal britânico The Mirror que Stardust é uma "completa perda de tempo". Segundo ela, Bowie jamais assistiria ao filme. "(O filme) Deveria se chamar A História de Ron Oberman Chorando e Reclamando. Foi entediante. Eu não achei nada divertido. É mais triste do que um documentário de uma estrela. Foi muito neutro e sem graça e, sem a música, não há nada".
Angie crê que o filme parte do ponto de vista de Oberman (o executivo morreu em 2019, aos 76 anos), que alguém o chamou e tomou notas. Por conta da falta de canções, Angie disse que o longa se transformou em algo que "só obcecados por celebridades" irão assistir. Ela também se queixou do roteiro, ressaltando que as discussões retratadas no filme não aconteceram daquele jeito.
"Nosso casamento não estava à beira do colapso. Isso veio muito depois. Não estava preocupada com nada, estava de muito bom humor. Eu estava me divertindo muito em Londres. Eu não estava de plantão 24 horas por dia. A personagem que me representa diz que eu queria que David e eu fôssemos rei e rainha, mas isso não é verdade", disse Angie. "Eu queria que a carreira de David fosse incrível e depois queria perseguir meus sonhos de dirigir e atuar. Eu não queria ser uma rainha", completou.
Bowie é mostrado consumindo cocaína em Stardust, o que, segundo Angie, também é impreciso. "Não era fácil conseguir cocaína naquela época. Isso veio muito depois, nos anos 1970", disse Angie. "Parece um pastiche e um estereótipo", acrescentou.
Por sua vez, Flynn defendeu, em entrevista à revista NME, que a obra fala por si: "Sempre soube que seria um filme polêmico".