Duas Copas do Mundo foram erguidas pelo Brasil em 1962. Na lembrança imediata vem a de futebol, com a imagem de Mauro, capitão da Seleção Brasileira, comemorando o bicampeonato no Chile, no dia 17 de junho. A outra, literalmente de cinema, veio em 23 de maio e foi uma façanha sem precedentes e até hoje não repetida pelo país. Seu capitão, Anselmo Duarte, levantou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com O Pagador de Promessas, maior triunfo de um filme brasileiro em todos os tempos, por ser este o mais prestigiado dos certames cinéfilos no mundo.
Na próxima terça-feira (21/4), será lembrado o centenário de nascimento de Anselmo, que morreu em 7 de novembro de 2009, aos 89 anos, em consequência de um acidente vascular cerebral. Galã boa-pinta e imensamente popular que se lançou à direção sob a desconfiança de seus pares e dos críticos, Anselmo consagrou-se como o herói improvável que colocou o Brasil no mapa do cinema internacional.
Ele morreu reclamando que a conquista de O Pagador de Promessas nunca foi devidamente valorizada em seu próprio país. E que conquista. Uma amostra dos importantes cineastas entre os 34 na disputa pela Palma de Ouro na França: Agnès Varda (com Cléo das 5 às 7), Michelangelo Antonioni (O Eclipse), Sidney Lumet (Longa Jornada Noite Adentro), Pietro Germi (Divórcio à Italiana), Robert Bresson (O Processo de Joana D’Arc) e Luis Buñuel (O Anjo Exterminador).
A consagração, levou o paulista Alselmo a bater de frente com a turma do Cinema Novo encabeçada pelo baiano Glauber Rocha e com parte da crítica local, que avaliavam O Pagador de Promessas como um filme acadêmico, careta, fora de sintonia com a modernidade que arejava o cinema mundial com os ventos da Nouvelle Vague francesa. Em meio à disputa de egos inflamados, Glauber lançou disparates como dizer que Anselmo tinha se saído melhor na sua estreia na direção, com Absolutamente Certo (1957), comédia romântica da qual também foi protagonista. Antes de O Pagador de Promessas, ele havia assinado a adaptação de As Pupilas do Senhor Reitor (1960), romance do português Júlio Dinis. E desde seu auge como protagonista das grandes produções da Atlântida e da Vera Cruz, nos anos 1950, já firmava carreira também como roteirista. Aprendeu com todos os mestres com quem trabalhou na era em que o Brasil, com dois seus grandes estúdios, buscava espelhar uma linha de produção de filmes aos moldes de Hollywood.
Com prestígio e recursos, Anselmo convenceu Dias Gomes, autor da peça teatral O Pagador de Promessas, a lhe vender os direitos para a adaptação. No enredo, a saga de Zé do Burro, homem simples que cumpre uma jornada épica arrastando uma cruz de um lugarejo do interior da Bahia até uma igreja de Salvador, a fim de cumprir o trato que fez com uma mãe de santo. Em seu caminho, o personagem, vivido no palco e na tela por Leonardo Villar, depara com a intolerância de um padre e oportunistas que querem tirar proveito de seu drama.
Muito da implicância dos cinemanovistas com Anselmo foi creditada ao fato de ele ter batido, na disputa interna para representar o Brasil em Cannes, Os Cafajestes, de Ruy Guerra, título embrionário do movimento. A Palma de Ouro, defendia Anselmo, transformou a birra em ciúme e dor de cotovelo – ele gostava de lembrar que, embora toda a badalação vindoura do Cinema Novo no circuito dos festivais, nunca igualaram seu feito. Mas o iconoclasta Glauber, no característico estilo morde e assopra, faz no seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro tantos elogios quanto reparos ponderados e pontuais ao trabalho de Anselmo.
Com seu longa seguinte, Vereda de Salvação (1965), baseado em peça de Jorge de Andrade, Anselmo concorreu ao Urso de Ouro do Festival de Berlim. Suas produções ao longo dos anos seguintes alcançaram repercussão discreta, entre elas Um Certo Capitão Rodrigo (1971), inspirado na obra de Erico Verissimo e rodada no Rio Grande do Sul. Aventurou-se no gênero das populares pornochanchadas, nos anos 1970, trabalhou na TV como ator e diretor e deixou como último filme por ele dirigido, simbolicamente, por reunir no set dois campões mundiais de 1962, Os Trombadinhas (1979), conhecido por ter Pelé no papel dele mesmo. A despedida de Anselmo como ator foi sem pompa, junto ao elenco do longa Brasa Adormecida (1987), de Djalma Limongi Batista.