Por Danilo Fantinel
Jornalista, está na França, onde faz estágio para seu doutoramento em Comunicação pela UFRGS
O novo filme de Roman Polanski, sobre a injusta condenação à prisão perpétua do capitão Alfred Dreyfus por traição, refere-se a fatos ocorridos na França a partir de 1894, porém movimenta temas sempre presentes na história, especialmente em nosso conturbado início de século 21. J’Accuse, que em português recebeu o título O Oficial e o Espião (e tem estreia prevista para 12 de março no Brasil), observa a engrenagem militar e judicial que levou o oficial judeu inocente a passar anos isolado na temida Ilha do Diabo até ser libertado, em 1906, após uma reviravolta processual. Na trama, a mentira se sobrepõe à verdade, a justiça torna-se injusta, a falsa traição esconde o verdadeiro traidor e a honra militar transforma-se em vergonha. Paralelamente, o longa revela as raízes do antissemitismo que tornaria a Europa um inferno décadas depois e que hoje volta a surgir em diversas nações.
Adaptado do romance An Officer and a Spy, de Robert Harris, J’Accuse narra a tragédia de Dreyfus (Louis Garrel), mas se desenrola pelo olhar do coronel Marie-Georges Picquart (Jean Dujardin) que, após a expulsão de seu ex-aluno da École Militaire e de seu consequente aprisionamento insular na Guiana Francesa, assume um posto-chave no departamento que foi o centro da farsa institucional. Aos poucos, Picquart percebe erros no processo que condenou Dreyfus por ter supostamente entregue documentos franceses secretos ao Império Alemão no contexto geopolítico que se seguiu à anexação germânica do território de Alsace-Lorraine em 1871.
O protagonista descobre que, na verdade, houve uma conspiração arquitetada pela cúpula das Forças Armadas de seu país para culpar um inóxio e esconder o real traidor da pátria. Ao revelar a seus superiores a armação que tornou Dreyfus o perfeito bode expiatório, Picquart abala as estruturas da Terceira República francesa (1870-1940), tornando-se ele mesmo inimigo de um Estado paralelo.
J’Accuse é o reflexo da excelente forma cinematográfica de Polanski. Trata-se de um filme sobre tomada de consciência e nossa capacidade de reformular julgamentos frente a evidências palpáveis. Porém, o roteiro de Robert Harris e de Polanski deixa claro que essas qualidades humanas não são inerentes a todos, sendo ignoradas quando interesses institucionais pela manutenção do estabelecido se impõem. Nessas ocasiões, torna-se mais fácil para os mandatários do poder destruir reputações alheias. Quaisquer paralelos entre a vida e a obra do cineasta, acusado de abuso sexual em processos distintos (leia abaixo), ficam a cargo do público.
Com direção de arte excepcional, o filme tem impecável reconstituição de época. A fotografia bem estudada resulta em qualidade técnica e estética de imagem, apresentando planos, enquadramentos e movimentações de câmera que reforçam a qualidade da narrativa audiovisual. J’Accuse também tem ótimas atuações, incluindo atores da Comédie Française como Hervé Pierre, Didier Sandre, Laurent Stocker e Laurent Natrella. Além deles, se sobressaem Emmanuelle Seigner no papel de Pauline Monnier, amante de Picquart e responsável por momentos de merecida leveza em um filme denso, Mathieu Amalric, em atuação cirúrgica na pele de Bertillon, um especialista em grafoscopia que reluta em aceitar seus absurdos erros no falso processo contra Dreyfus, e Grégory Gadebois, excelente intérprete de Henry, um impávido militar de patente inferior à de Picquart que se revelará seu forte antagonista na defesa da farsa jurídico-militar.
Mas há algum exagero em recursos como o flashback, instaurado, por exemplo, na análise de documentos pelos personagens, levando a narrativa ao passado para esclarecer fatos anteriores ao presente fílmico. Ainda assim, essas táticas funcionam em uma nebulosa trama na qual novidades surgem a cada momento para desvendar um caso repleto de politicagem, contrainformação e atos pouco éticos nos bastidores republicanos.
Há sequências memoráveis que provocam tensão e despertam a atenção do público, como a cena de abertura, em que Dreyfus é exposto à vergonha pública e expulso das Forças Armadas. Esse momento é marcado não só pela solenidade gélida em um dia frio e escuro, mas também pela pulsante atuação de Garrel, que defende aos gritos a inocência de seu personagem desde o início. Ainda que fique em um segundo plano narrativo perante o decisivo Picquart de Jean Dujardin, Garrel delimita muito bem a derrocada de Dreyfus, que sofre uma evidente degradação física e psíquica no decorrer do longa. Ao final, apresenta-se como um homem quebrado pelo poder, com um corpo esmagado pela injustiça e uma voz quase inaudível em um tribunal moral que lhe roubou a dignidade.
Também se destacam os embates de Picquart, ele mesmo um antissemita, contra o generalato que passa a persegui-lo a fim de silenciá-lo, buscando dar a ele o mesmo destino de Dreyfus. Encurralados, ambos recebem o apoio de grandes nomes da sociedade da época, como Émile Zola (André Marcon), responsável pelo artigo J’Accuse, no qual revela os fatos mascarados pela liderança militar e acusa nominalmente os responsáveis pela farsa. Tanto na França do fin de siècle quanto na obra de Polanski, o texto de Zola provoca uma convulsão social, dividindo a sociedade francesa entre um grupo que defendia a inocência de Dreyfus e outro que o condenava cegamente. A publicação colocou em ebulição um julgamento que por si só já era contundente e que estava sendo encenado em um pano de fundo nitidamente antissemita.
O registro histórico demonstra que Dreyfus recebeu o perdão presidencial, sendo posteriormente reconduzido às Forças Armadas como comandante. Tendo participado da Primeira Guerra Mundial, viria a morrer em 1935, dois anos depois de Adolf Hitler tornar-se chanceler alemão. De fato, J’Accuse ecoa os primeiros movimentos de um embrião antissemita europeu em fins do século 19, algo que ganha força na Berlim da década de 1920, como demonstra Ingmar Bergman em O Ovo da Serpente (1977), e que viria a se configurar no nazismo da década seguinte. Não à toa, a injustiça contra Dreyfus levou à fundação da Ligue des Droits de l’Homme, em 1898.
Se o cinema não esquece da desumanidade e das injustiças que nos cercam, a sociedade também não pode esquecer.
Dreyfus e Zola
- No mundo francófono, o Caso Dreyfus, chamado em francês de Affaire Dreyfus, costuma ser evocado para simbolizar a injustiça moderna. Além de um complexo erro judicial, também é apontado como um episódio que antecipou o antissemitismo pré-Segunda Guerra Mundial. Judeu, Alfred Dreyfus foi preso e condenado por traição em 1894. Manifestações de apoio a ele e denúncia de erro judicial surgiram nos anos seguintes, mas foi em 1897 que Mathieu Dreyfus, irmão de Alfred, trouxe a público uma prova indicando que Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy havia entregue os documentos sigilosos aos alemães, fato pelo qual Dreyfus fora acusado.
- O artigo J’Accuse, do escritor Émile Zola, publicado em janeiro de 1898, é apontado como estopim da turbulência social que se seguiu e que inclui episódios de violência antissemita registrados na Argélia (à época pertencente à França). Zola chegou a ser condenado, e sua morte, em 1902, por asfixia, até hoje permenece não esclarecida. Até a libertação de Dreyfus, em 1906, houve reviravoltas jurídicas e até uma nova condenação do militar. Mesmo após a libertação, Dreyfus seguiu perseguido, tendo escapado de uma tentativa de assassinato em 1908. Ele morreu em 1935, aos 76 anos.
Outros filmes sobre o caso
- Longas-metragens
Dreyfus, de Richard Oswald (Alemanha, 1930)
The Dreyfus Case, de F.W. Kraemer e Milton Rosmer (Reino Unido, 1931)
The Life of Emile Zola, de William Dieterle (EUA, 1937)
I Accuse!, de José Ferrer (EUA/Reino Unido, 1958)
Dreyfus ou l’Intolérable Vérité, de Jean Chérasse (França, 1975) - Curtas-metragens*
Trial of Captain Dreyfus, estrelado por Bernard H. Paris, sem crédito de direção (EUA, 1899)
Dreyfus Receiving His Sentence, com Bernard H. Paris, sem crédito de direção (EUA, 1899)
L’Affaire Dreyfus, de Ferdinand Zecca (França, 1902)
L’Affaire Dreyfus, de Ferdinand Zecca e Lucien Nonguet (França, 1908)
L’Affaire Dreyfus, de Jean Vigne (França, 1965) - Séries ou telefilmes
Affäre Dreyfus, de Hanns Farenburg (Alemanha Ocidental, 1959)
Affäre Dreyfuss, série de TV sem crédito de direção (Alemanha Ocidental, 1968)
Prisoner of Honor, de Ken Russell (EUA/Reino Unido, 1991)
Rage and Outrage: The Dreyfus Affair, de Raoul Sangla (Canadá/França/Reino Unido, 1994)
L’Affaire Dreyfus, de Yves Boisset (França/Alemanha, 1995)
* Além dos filmes listados, Georges Méliés dirigiu 11 curtas-metragens em 1889.
Fonte: Internet Movies DataBase (Imdb)
Polanski e a Justiça
– Tentam me transformar em um monstro.
Foi o que disse Roman Polanski quando da estreia do filme, em novembro, na França. A chegada do longa ao circuito francês se deu logo após uma nova acusação de estupro, apresentada pela fotógrafa Valentine Monnier. Polanski, que tem 86 anos, resolveu falar à revista Paris Match, em entrevista na qual classificou a denúncia como “bizarra”.
Valentine havia afirmado ter sido agredida e estuprada por Polanski em 1975, na Suíça, quando tinha 18 anos. Ao declarar que se lembra dela “vagamente”, o diretor de cinema acrescenta que “evidentemente não guarda na memória o que ela conta, pois é falso”. A fotógrafa o acusa de ter sido assediada quando ela e uma amiga hospedaram-se na casa de Polanski, em uma temporada na qual foi esquiar na região de Gstaad.
– Isso é uma loucura – disse Polanski à Paris Match. – Toma como testemunhas três amigos meus presentes no chalé: meu assistente Hércules Bellville, Gérard Brach e sua esposa, Elizabeth. Os dois primeiros morreram, algo muito conveniente, pois já não podem confirmar ou refutar o que ela disse. Em relação à senhora Brach, o jornal não a encontrou.
Valentine revelou ter sido encorajada a apresentar a denúncia tantos anos depois devido a outras acusações que Polanski têm recebido, além da própria estreia de J’Accuse, “um filme que faz referência a um erro judicial”.
O cineasta, por sua vez, acusou o produtor Harvey Weinstein, denunciado por abuso sexual por mais de 80 mulheres e catalizador do movimento #MeToo. Segundo Polanski, foi Weinstein que “desenterrou” a denúncia de Samantha Geimer, a primeira contra o diretor. Samantha o acusava de estupro em 1977, quando era menor de idade, caso que de fato voltou à tona em 2003, quando O Pianista, filme de Polanski, concorria ao Oscar (conquistou três estatuetas) e acabou voltando ao noticiário em meio à guerra de bastidores da maior premiação da indústria do cinema.
– O assessor de imprensa de Weinstein foi o primeiro a me chamar de “estuprador de crianças” – protestou Polanski.
A nova denúncia abalou a campanha de marketing no lançamento de J’Accuse, restringindo as manifestações do cineasta no período.