Quando ela tinha cerca de 11 anos, os pais de Lupita Nyong'o levaram para casa uma fita cassete que mudou sua vida. Tinha a faixa Regulate, dos reis do hip-hop Warren G e Nate Dogg. Nyong'o e os cinco irmãos, que então viviam nos subúrbios de Nairóbi, capital do Quênia, só entendiam parte da letra da música — uma história efusiva e carregada de gírias sobre um roubo frustrado ao qual se segue o indício de um ritual de sexo grupal. Mas a música era hipnótica e evocativa, sugerindo um universo envolvente. Nyong'o se lembra de ouvir a fita sem parar, rebobinando-a infinitamente até saber a letra inteira de cor.
Das muitas coisas aparentemente simples, mas difíceis de reproduzir, que a estrela de 36 anos fez em frente a uma câmera, vale a pena citar o rap. Ela cantou o estilo duas vezes, ambas filmadas no banco de trás de um carro e depois publicadas no Instagram: a primeira para celebrar seus três milhões de seguidores e a segunda com Letitia Wright, com quem coestrelou Pantera Negra, na semana da estreia do filme.
Ninguém diria que Nyong'o é a próxima Warren G, mas há algo de perturbador em sua performance de rap. Aqui está uma pessoa cuja primeira aparição em um longa-metragem, no papel da inesquecível Patsey, de 12 Anos de Escravidão (2013), fez dela a sétima mulher negra e primeira africana negra a ganhar um Oscar de atuação; uma pessoa de rosto tão simétrico que mais parece uma boneca e de pele impecável que conquistou quatro capas exclusivas da revista Vogue; alguém que fala quatro línguas e tem um diploma da Universidade Yale.
E essa mesma pessoa, usando óculos escuros e jocosamente se autodeclarando uma encrenqueira, revela ser também capaz de cantar rap, com níveis apropriados de indiferença e convicção, sem perder o ritmo. Alguém seria capaz de suspeitar de uma negligência divina.
Nyong'o falou sobre o hip-hop como hobby em uma tarde de março em Austin, nos Estados Unidos, onde estava para lançar Nós, novo filme de Jordan Peele, no festival de cinema South by Southwest. Como os vídeos de rap, a investida no universo do terror representa tanto uma abstenção quando uma crítica implícita ao manual que Hollywood espera que estrelas do nível dela sigam. Apesar de ter construído conscientemente um espaço próprio em uma indústria que não foi feita para ela, ocupar e defender esse espaço é outra questão. A atuação de Nyong'o em Nós, que tem recebido críticas eufóricas, é um alerta a qualquer um que tente negar a ela o que lhe é próprio.
Nyong'o passou a maior parte dos últimos dois anos se preparando, filmando e promovendo o filme Pantera Negra, da Marvel, no qual interpreta Nakia, uma espiã de Wakanda idealista e amada pelo herói. O sucesso mundial do filme pode transformar a atriz vencedora do Oscar em uma heroína sucesso de bilheteria, uma combinação exclusiva que Nós está disposto a confirmar. Nele, ela interpreta Adelaide, a matriarca da charmosa família Wilson, e Red, sua sósia espiritual sádica.
Peele escreveu as personagens tendo Nyong'o em mente e os dois trabalharam bem próximos na interpretação do roteiro. A primeira vez que se encontraram foi logo após o fim de Pantera (durante a produção do filme, a atriz, que sempre foi fã de terror, organizou uma viagem do elenco para assistir ao inesperado sucesso de 2017 de Peele, Corra!) e rapidamente se deram bem.
— Ele realmente cativava meus pensamentos e ideias. Ele vem com essa essência de uma ideia que é tão forte e depois continua a complementá-la e a esclarecer suas intenções. Quando ele me escolheu para o elenco do filme eu me juntei a ele nesse processo — explicou.
Em uma entrevista, Peele disse ter ficado agradecido pelo par extra de olhos.
— Desde o princípio, ela me fez perguntas sobre as personagens para as quais eu não tinha resposta. E eu sabia tudo sobre elas! — contou.
No filme, na melhor descrição possível sem spoilers, Adelaide vai passar férias na praia com o marido (Winston Duke, também companheiro de Pantera Negra) e os dois filhos. Tudo vira um desastre quando outra família de origem misteriosa – cópia deles, mas na realidade de um pesadelo sinistro – aparece na porta.
Peele desenvolveu o roteiro com características obscuras para marcar a aparência e a essência da sósia cruel de Adelaide. Uma tinha a ver com a maneira como Red se movia, que o diretor explicou com apenas duas palavras excepcionalmente arrepiantes: rainha barata.
Outra indicava que Red tinha uma voz áspera, como se estivesse definhando pela falta de uso. Essa semente – presente em uma única frase da página – foi fertilizada quando Nyong'o compareceu a um evento de moda onde, para sua surpresa, escutou um apresentador cuja voz ela pensou ser parecida com a que Peele estava descrevendo. O orador era Robert F. Kennedy Jr., portador de disfonia espasmódica, um distúrbio neurológico que causa espasmos involuntários da laringe. No filme, a atuação de Nyong'o, de arrepiar a alma, é definida como uma amplificação assombrada da anomalia, que soa como o que aconteceria se você engolisse um ralador de queijo.
A primeira cena de Nyong'o caracterizada como Red, um monólogo longo e sem interrupções que explica a história de vida da personagem, foi um dos momentos mais dramáticos da filmagem.
— Ela entrava no ambiente e você podia sentir o oxigênio sendo sugado dali. A primeira vez que ela fez foi mágico. Acho que filmamos umas dez vezes – apenas porque podíamos – e toda vez era maravilhosa — elogiou.
Os pais de Nyong'o a acompanharam à estreia de Nós. O pai, Peter, é político e governador do condado de Kisumu, no Quênia. Ainda jovem, professor universitário crítico do antigo presidente Daniel arap Moi, exilou-se com a família temporariamente na Cidade do México, onde Nyong'o nasceu e recebeu um nome espanhol inspirado pelo lar de adoção. A mãe, Dorothy, é consultora de relações-públicas e gestora da Africa Cancer Foundation (Fundação Africana contra o Câncer), fundada pelo marido.
Nós é apenas a quarta aparição presencial de Nyong'o em um filme desde sua estreia na indústria e, como atriz principal, ela ainda está aprendendo como e onde depositar seus esforços. Muitos na mesma posição dela aceitariam tantos trabalhos quanto suas agendas pudessem suportar, temendo as leis da gravidade capazes de trazer os prodígios de Hollywood abruptamente de volta à terra.
Contudo, aqui, mais uma vez, a atriz tem desafiado as expectativas. Ela acredita que a criatividade é um recurso finito e não a oferece assim facilmente.
Não sou criativa o tempo todo, simplesmente não sou. Cada papel esgota uma parte de mim e sei que faço meu melhor trabalho se tiver tido tempo para ficar ociosa.
LUPITA NYONG'O
atriz
— Não sou criativa o tempo todo, simplesmente não sou. Cada papel esgota uma parte de mim e sei que faço meu melhor trabalho se tiver tido tempo para ficar ociosa — argumentou.
Ser seletiva significou dizer não para produções feitas com o objetivo de divulgar seu talento, oportunidades com as quais outras atrizes sonham. Após receber o Oscar, Nyong'o foi cotada para estrelar a refilmagem americana do filme de ação mexicano Miss Bala, mas acabou optando por não entrar no projeto. (O filme foi lançando em fevereiro nos Estados Unidos tendo Gina Rodriguez como protagonista.)
— Simplesmente percebi que meu interesse não se encaixava na história, por isso escolhi não participar. Não sentia que tinha a perspectiva certa para o projeto — esclareceu.
Sua consciência de que há poucos exemplos históricos para estrelas de cinema mulheres que não sejam brancas, particularmente as negras, fez com que ficasse especialmente atenta ao exemplo que está passando. Com Pantera Negra, Nyong'o fez parte de uma mudança de grandes proporções, responsável por tirar o branco do lugar inquestionável como padrão do cinema popular americano. Nós, em que a raça dos personagens centrais – apesar de explicitamente negros – não é tratada como uma questão, deu a ela a chance de aprofundar um pouco mais essa mudança.
— Realmente, não há nada de excepcional em ser negro ou africano, e acredito que isso seja em si uma declaração poderosa. Podemos ser vistos e percebidos como parte integrante e essencial da experiência global, porque essa é que é a verdade — concluiu.
Por Reggie Ugwu