Como seria sua vida contada pelas pessoas mais importantes de sua trajetória? É o que propõe Bio – Construindo uma Vida, sétimo longa-metragem de Carlos Gerbase, um dos principais nomes da geração do cinema gaúcho que despontou no começo dos anos 1980. Produção da Prana Filmes, o filme em cartaz desde esta quinta (4) nos cinemas combina documentário e ficção acompanhando os 111 anos de vida de um biólogo que não aparece em cena. Cabe ao espectador imaginá-lo e formar um mosaico de sua personalidade com base nos 39 depoimentos de pessoas ligadas à vida do protagonista.
Entre os entrevistados estão familiares, amigos, colegas de escola e trabalho e a amante, vividos por nomes como Maria Fernanda Cândido, Maitê Proença, Marco Ricca e Werner Schünemann, além de atores e atrizes conhecidos da dramaturgia gaúcha.
– Bio é um desafio de imaginação, um exercício com a mente. São muitas histórias pequenas que se juntam – destaca Gerbase.
Como referências para sua experimentação audiovisual, o diretor e também professor de Cinema buscou referências em realizadores como Eduardo Coutinho, nas entrevistas, e David Lynch, na estética onírica.
– Realmente, é um bicho estranho. É uma experiência com a estrutura do documentário. Bio foi uma oportunidade de fazer um tributo ao gênero. Foi legal fazer essas 39 entrevistas, mesmo que sejam de mentira – diz Gerbase.
Na narrativa de Bio, os personagens falam sobre o protagonista sempre no tempo presente, seja nos anos 1960 ou lá pela década de 2070.
– Isso que faz com que o filme seja impossível. É mais que um documentário falso. Bio em nenhum momento quer enganar o espectador trazendo dúvida se é documentário ou ficção. O documentarista viaja no tempo, é ficcional. Isso foi o que me levou a levar mais fé no projeto. Quando comecei a escrever o roteiro, queria fazer um documentário que acrescentasse algo ao gênero – conta Gerbase.
Um ano de montagem e prêmios em Gramado
Rodado em um estúdio de Porto Alegre entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016, Bio foi exibido pela primeira vez no Festival de Gramado, em 2017, vencendo três Kikitos: melhor filme pelo Júri Popular, Prêmio Especial do Júri, para Gerbase, pela direção dos 39 atores e atrizes, e melhor desenho de som (Augusto Stern e Fernando Efron). Depois de circular por festivais, o filme remou na espera por um edital para seu lançamento. Antes, o processo de montagem levou um ano.
— O montador, Milton do Prado, tinha o seu ritmo. Ele é discípulo do (montador) Giba Assis Brasil, que dizia que se leva um ano para montar um longa direito. Havia um pouco de angústia, pois parecia que o filme não ficava pronto nunca (risos). Depois, tivemos o tempo de participações em festivais, tu não podes botar no mercado antes disso – relata o diretor.
Os filmes anteriores de Gerbase, Menos que Nada (2012) e 3 Efes (2007), tiveram lançamentos multiplataforma, apresentados simultaneamente nos cinemas, em DVD, nas TVs aberta e paga e em streaming. A estratégia não se repetiu com Bio:
— Temos que pensar na trajetória possível de cada filme. Quando estávamos finalizando a montagem de Bio, fizemos dois testes de audiência, em Recife e São Paulo. A recepção foi muito legal. Todo mundo achava o filme muito diferente. Isso nos levou a pensar em fazer o lançamento nas salas. Os prêmios também nos estimularam a isso. Depois veremos outras possibilidades de exibição.
De sua estreia em Gramado para cá, Bio ganhou o subtítulo Construindo uma Vida.
— O complemento veio da opinião da distribuidora (Bretz Filmes). Achavam que era um pouco enigmático demais só Bio. Como sempre, eles têm a ideia, mas não a solução (risos). Pensei nesse subtítulo, que achei esclarecedor e honesto. É uma vida sendo construída por meio de todas essas entrevistas – explica Gerbase.
Veja a entrevista completa com o diretor de Bio:
O mexicano Alfonso Cuarón triunfou no Oscar e no Globo de Ouro com Roma, filme da Netflix. Steven Spielberg e os organizadores do Festival de Cannes dizem que isso não é cinema, é televisão. Qual é sua opinião nessa briga? Eu ouço isso há tanto tempo que me parece fora do tempo essa briga. As obras audiovisuais vão circular em todos os espaços possíveis. O audiovisual está presente em muitos lugares diferentes. O público cada vez mais escolhe o lugar que for mais adequado para ele. Agora, a sala de cinema ainda é um lugar muito bom. Com condições adequadas, o espetáculo coletivo ainda é muito melhor. Roma é um baita filme. Não adianta ficar brabo.
Você começou a fazer cinema quando jovem e hoje ensina jovens a fazer cinema. Que paralelo é possível fazer entre uma realidade de poucos recursos e restritas janelas de exibição do passado e do presente, com tecnologia que aboliu barreiras entre o profissional e o amador e as múltiplas janelas de exibição? Para quem está começando, o mundo atual é muito melhor. Costumo dizer para os meus alunos que eles nem sabem o quanto são felizes. Comecei fazendo Super-8, que era dificílimo de filmar e exibir. Quando tu terminavas, não havia nenhuma cópia. Cheguei a projetar Inverno (1983) umas 200 vezes. Era uma vida difícil, sendo produtor, diretor e exibidor. Hoje tu consegues dar uma arrancada na web, o que é ótimo. O problema é fazer as pessoas assistirem, se destacar em meio a uma montanha de filmes. Quando fazíamos nossas produções, cada filme era um acontecimento. Prefiro esse mundo digital de hoje, de múltiplas possibilidades, do que aquele analógico, que me condena a trabalhar de uma única forma.
Que avaliação fazes da produção gaúcha no cinema e na TV? Estou muito feliz, vendo muitos ex-alunos nossos da PUCRS e também de outras faculdades chegando em festivais internacionais. Primeiro com Castanha (2014), de Davi Pretto, depois com BeiraMar (2015) e Tinta Bruta (2018), ambos de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon. Esteticamente falando, é um momento de diversidade, do surgimento de novos talentos e novas propostas. Isso é papel dos cursos de cinema. O cinema argentino tem sido tão forte nos últimos tempos porque tem tido uma formação cultural sólida. Nós ainda vamos chegar lá.
Ouça a entrevista de Carlos Gerbase ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha, concedida nesta sexta-feira (5):